Praticamente não nos envolvemos em debates acerca
da composição e extensão das Escrituras do Antigo e Novo Testamento. Isso
porque já nascemos com uma Bíblia na mão, não importa a tradição. As Sociedades
Bíblicas já nos entregam a “Bíblia” pronta e não percebemos que a “Coleção de
Escritos” ali contida tem um longo processo de formação e calorosas discussões.
Premissas acerca da Autoridade da Igreja, Inspiração dos Textos Sagrados, de
sua Preservação, da Revelação e outros assuntos são subjacentes à Canônica
[1].
Embora o resultado da forma final das “bíblias” [2]
seja decisão conciliar como veremos abaixo, é preciso um exame
histórico-teológico da questão. Como diz F. F. Bruce [3]:
A crença cristã histórica é que o Espírito Santo,
que presidiu à formação de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e
incorporação, continuando assim a cumprir à promessa do Senhor de que ele
guiaria os discípulos a toda verdade. Isso, no entanto, só pode ser discernido
por uma percepção espiritual, e não por uma pesquisa histórica. Nosso
propósito, então, é averiguar o que a pesquisa histórica revela sobre a origem
do cânon neotestamentário. Alguns dirão que nós aceitamos os vinte e sete
livros do Novo Testamento pela autoridade da Igreja, mas mesmo assim como essa
instituição veio a reconhecer esses livros, e nenhum outro mais, como dignos de
serem colocados no mesmo nível de inspiração e autoridade do cânon do Antigo
Testamento?
Essas indagações nos conduzem a ver que muitos
aspectos importantes acerca do Cânon ainda precisam ser debatidos. Para muitos,
algumas questões resolvem-se apelando para as mesmas decisões conciliares. Por
exemplo, entre os Protestantes, especialmente aqueles ligados à
Confessionalidade Histórica, pode-se simplesmente apelar para uma Confissão e dar
a discussão por encerrada. Vejamos o caso de nossos Símbolos, especialmente em
sua Confissão de Fé. No Capítulo I e § 2 e 3, diz o Símbolo sobre a extensão do
Cânon:
II. Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de
Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento,
que são os seguintes, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de
fé e de prática: O Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,
Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis, I
Crônicas, II Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios,
Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Isaías, Jeremias, Lamentações de Jeremias,
Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum,
Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. O Novo Testamento: Mateus,
Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, I Coríntios, II Coríntios, Gálatas,
Efésios, Filipenses, Colossenses, I Tessalonicenses, II Tessalonicenses, I
Timóteo, II Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, I Pedro, II Pedro, I João,
II João, III João, Judas, Apocalipse. III. Os livros geralmente chamados
Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon da
Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo
algum podem ser aprovados ou empregados senão como escritos humanos.
Note que a CFW apresenta os 66 livros como o temos
hoje nas Bíblias Protestantes, bem como a rejeição dos livros chamados
apócrifos, mas não apresenta os critérios para esta coleção. Houve um longo processo
histórico para aceitação e, ainda hoje, pelo menos entre os Protestantes, não
há mais discussão sobre tal extensão.[4] No entanto, as Bíblias Católicas
possuem uma extensão diferente dos Protestantes.
O estudo do Cânon é importante para que se possa
obedecer a Deus de forma correta e não incorrer em morte: “Porque esta
palavra não vos é vã, antes é a vossa vida; e por esta mesma palavra
prolongareis os dias na terra a qual, passando o Jordão, ides a possuir” (Dt
32. 47).
Nome e Conceito (Canonicidade e Apócrifos) [5]
A palavra Cânon (kanw,n), de origem semita,
significa cana de medir ou régua. Segundo informa Philipp Vielhauer, [6]
o uso figurado do termo foi aplicado a diversas áreas: estética,
gramatical, hermenêutica, ética, filosófica e religiosa. Passou a ter, então, o
sentido de norma ou regra. O termo aparece 62 vezes no AT (Jó 31. 22; Is. 46.
6; 2 Rs. 18. 21).
No Novo Testamento (NT) a palavra kanón aparece
4 vezes: em Gl 6. 16: “e, a todos quantos andam conforme esta regra”;
Paulo usa no sentido de regra moral ou lei moral e em 2Co. 10. 13, 15, 16, onde
aparece respectivamente “reta”, “nossa regra”, “além”, com o
sentido de esfera de ação demarcada por Deus.
Entre os Pais da Igreja, pode-se verificar que
Clemente de Roma usa a palavra como “cânon de obediência”. Clemente de
Alexandria chama a harmonia do Antigo e NT de “cânon eclesiástico”. Irineu, em
referência ao Credo Batismal, o chama-o “Cânon da Verdade” (kanw.n tn/j
avlhqei,aj). Policarpo chama o Evangelho de “Cânon da Fé”. As Sagradas
Escrituras foram chamadas de “regra (cânon) de todas as coisas”, enquanto
Isodoro de Pelúsio a chama de “divinas Escrituras, Cânon da Verdade”. Muitos
são testemunhos antigos que poderiam ser alistadas aqui para mostra que o termo
“cânon” já estava sendo utilizado como um padrão, uma regra.
É óbvio que a Igreja em si não precisou formar para
si a ideia de um cânon,[7] até porque o Cristianismo, como descendente do
Judaísmo (At 9.2;24.5,14;28.22), não estava sem uma “Escritura Sagrada”.
Simplesmente, o Cristianismo recebeu como Palavra de Deus as “Antigas
Escrituras” como autoridade a priori.[8] As palavras de Benjamin Warfield são
interessantes aqui. Diz ele:
A igreja cristã não precisou formar para si a ideia
de um ‘cânon’ [...], ou seja, de uma coleção de livros dados por Deus para ser
a regra autoritativa de fé e prática. Ela herdou esta ideia da igreja judaica,
juntamente com a coisa em si, as Escrituras judaicas, ou o cânon ‘do Antigo
Testamento’ [...] A igreja cristã, portanto, nunca existiu sem a ‘Bíblia’ ou
sem um ‘cânon’ [9]
Porém, o termo Cânon foi aplicado aos escritos do
AT/NT no 4.º século e isso em dois sentidos: [10] primeiro, como “registro oficial”,
um “catálogo”, aplicado à lista dos livros reconhecidos na Igreja como escritos
sagrados. No segundo sentido, o termo foi usado como “norma normans” (norma
normativa), aplicado à Coleção de Escritos Sagrados como regra de ensino e vida
de igreja pelo conteúdo destes escritos. Portanto, quando a Igreja Cristã
recebeu e confirmou a lista dos livros aceitos e recebidos como inspirados, a
palavra cânon passou a ser usada para expressar o conteúdo das Escrituras como
se encontra nestes livros. Assim, “cânon é o corpo de escritos havidos por
únicos possuídos de autoridade normativa para a fé cristã, em contraste com os
escritos que não o são, ainda que contemporâneo”.
Quanto ao termo “apócrifo” (gr. Apokryphos),
que significa “oculto”, “secreto” ou “escondido”. Segundo Geisler,[11] o termo
“geralmente se refere a livros polêmicos do AT que os protestantes rejeitam e
os católicos romanos e as igrejas ortodoxas aceitam”. Porém, os que aceitam
tais livros os chamam de “deuterocanônicos”, distinguindo, assim, dos livros do
Cânon Judaico (AT) chamado de Protocanônico.
O termo foi aplicado primariamente a “livros
místicos de sentido obscuro e esotérico que só se deveriam colocar nas mãos de
uns poucos iniciados, capazes, por isso mesmo, de os entenderem, pois ao povo
em geral eram inteiramente ininteligíveis”. Assim foi chamado o livro de
Zoroastro. Posteriormente o termo passou a designar a literatura espúria, falsa
ou fictícia e, por fim, aos heréticos. Daí “entre os cristãos”, diz Bentezen ,
o termo significar os “escritos que estão excluídos do Cânon”. Entre os Judeus
havia um termo para diferenciar entre os Canônicos e Apócrifos: “os que mancham
as mãos” e “os que não mancham as mãos”.
A Revelação Auto-Autenticada de Deus – Critério
Primeiro para Canonicidade[14]
Para nossa discussão neste escrito, propomos
estudar o tema do Cânon começando com o pressuposto da Revelação de Deus.
Primeiro, porque, como Cristãos, justificamos nossas crenças no próprio Deus e
não nas opiniões ou especulações humanas. Sendo assim, a Revelação é a garantia
de nosso conhecimento. Na Luz do Senhor vemos a Luz (Sal 36.9). Ora, se em
Cristo Jesus estão escondidos todos os tesouros da sabedoria, então o princípio
de nossa sabedoria começa com o Senhor Jesus e sua revelação auto-autenticada
(Col 3.2).
Sendo assim, primeiramente trataremos da
auto-autenticação dos Documentos Bíblicos, percebendo que não é a Igreja que
tem autoridade sobre as Escrituras, mas, sim ao contrário: as Escrituras, sendo
Revelação de Deus, têm autoridade sobre a Igreja. Diferente dos Romanistas, não
repousamos a nossa fé na Tradição, mas sobre o testemunho de Deus como
registrado em sua Palavra.[15] São apropriadas as palavras de Charles Hodge
[16]:
Não cremos que o Novo Testamento seja divino com
base no testemunho da Igreja. Aceitamos os livros incluídos nas Escrituras
canônicas sobre a dupla base da evidência interna e externa. Pode-se provar
historicamente que esses livros foram escritos por homens cujos nomes carregam;
e pode-se também provar que esses homens foram instrumentos devidamente
autenticados do Espírito Santo. A evidência histórica que determina a autoria
do Novo Testamento não é exclusivamente a dos pais cristãos. O testemunho dos
escritores pagãos é, em alguns aspectos, de maior peso que o dos próprios pais.
Podemos crer no testemunho da testemunho da história inglesa, eclesiástica e
secular, de que os Trinta e Nove Artigos foram elaborados pelos reformadores
ingleses, sem sermos tradicionalistas. De igual forma, podemos crer que os livros
do Novo Testamento foram escritos pelos homens cujos nomes carregam sem admitir
a tradição como parte da regra de fé. Além disso, a evidência externa de
qualquer gênero é uma parte bastante subordinada do fundamento da fé
protestante nas Escrituras. Esse fundamento é principalmente a natureza das
doutrinas nela reveladas, bem como o testemunho do Espírito, com e pela
verdade, ao coração e à consciência. Cremos nas Escrituras pela mesma razão que
cremos no Decálogo.
Sendo assim, o fundamento para aceitação dos Livros
autoritativos independe de alguém reconhecer ou não sua canonicidade. Antes, a
“natureza (ou razões) da canonicidade é, portanto, logicamente distinta da
história (ou reconhecimento) da canonicidade”. [17] Então, de que depende?
Tenho, dentro deste arcabouço pressuposicional, que dois fatores são
primordiais. O primeiro, a Inspiração torna a autoridade de um livro
reconhecidamente divino. Se Deus falou, o que ele diz é autoridade suficiente.
Na entrega de Sua Palavra, Deus mesmo é a sua garantia Cf. Gn 22. 16; Hb 6.13).
Independente da resposta humana, os escritos são, em si mesmo, canônicos. A
Escritura, portanto, não se torna divina através de reconhecimento individual
ou coletivo [18]. Pode parecer que esse critério seja subjetivo, mas não é.
Antes, ele é corroborado pela própria Escritura (Deut. 4.2; Pv 30. 5, 6; Apoc.
22. 18, 19). [19] Segundo, aliado à Inspiração, temos também a Providência. Nem
tudo que Deus revelou foi preservado ou escrito (Nm 21.14; Js 10. 31; 2Cro
9.29; 12.15; Jo 21.25; 1Co 5.9; 12.28; 2Co 2.4; 7.8; 12.4, 7; Rev. 10.4), nem
por isso era menos autoritativo do que o que foi escrito e preservado. O Cânon
para e da igreja, então, deve ser aquele que foi inspirado e preservado. [20]
Nesse sentido, o que temos? Das coleções mais
antigas da Bíblia, iniciando pelos Dez Mandamentos, [21] quando o próprio
Senhor escreveu as Tábuas (Êx. 31.18), lemos também: “E aquelas tábuas
eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida
nas tábuas” (Êx 32.16; Dt 4.13; 10.4). As Tábuas foram guardadas e
preservadas na Arca da Aliança (Dt 10.5). A partir daí, a revelação escrita e
que seria preservada cresce por meio da daqueles a quem o Espírito Santo falou
(2Pe 1.21). Desse modo, Moisés, como profeta de Deus (Dt 34.10), recebeu de
Deus a ordem para escrever sua revelação (Dt 31. 24 – 26; Êx 17.14; 24.4;
34.27; Nm 33.2; Dt 31.22). O mesmo se deu com Josué (Js 24.26). Wayne Grudem
chama a atenção de que esse acréscimo feito por Josué seria impensável frente à
advertência de nada acrescentar à Palavra de Deus (Dt 4.2; 12.32). [22] A
conclusão é que, ou Josué desobedeceu ou que estava tão certo de que o que ele
escrevia era revelação autorizada de Deus. Os Escritos de Moisés foram
recebidos como Palavra de Deus. Por exemplo, de Josué, que recebeu a ordem de
estudar e guardar as palavras reveladas a Moisés (Js 1. 7,8) a Malaquias (4.4 –
6), a Lei revelada a Moisés considerada como a Palavra de Deus, não sendo
preciso um concílio (ou a antiga igreja) a definir sua canonicidade.
Especialmente relevante é o aumento dos escritos
por parte dos profetas (Cf. 1Sm 10.25; 1Cr 29.29; 2Cro 20.34; 1Rs 16.7; 2Cr
26.22; 32.32; Jr 30.2). A partir de então, cada escrito inspirado era
reconhecido (testemunho interno do Espírito Santo?) por outros profetas. Daniel
(9.2) reconheceu a autoridade dos escritos de Jeremias (25. 11, 12) [23].
O mesmo aconteceu com o trato que Jeremias deu a Miquéias (Jr 26.18), que
o precedeu 125 anos antes. [24] Por volta de 435 a.C, já não mais havia acréscimo
ao que ficou conhecido como “Tríplice Divisão”. Na literatura judaica após este
período, estabelecido estava a certeza que não mais havia novas palavras dos
profetas. Por exemplo, em 1Macabeus (9.27) se diz: “Israel caiu numa tribulação
tão grande como não houvera desde que cessaram os profetas”. Sabedoria de
Ben Siraque, também conhecido como Eclesiástico (c. 200-180), já mostra que o
Antigo Testamento encontrava-se organizado em “a Lei, os Profetas e os outros
Escritores” (Prólogo. Cf. 49.8 -10; 44 – 50). O segundo livro de Macabeus (c.
104-64 a.C; 2.13) relata os livros sagrados já reconhecidos, entre eles as
“Memórias de Neemias”, os “livros referentes aos reis e aos profetas, os
escritos de Davi e as cartas dos reis sobre as oferendas”. Digno de nota é que,
já no período cristão, não encontramos absolutamente nenhuma discussão entre
Jesus e os Líderes Religiosos de Israel sobre a extensão do Cânon do Antigo
Testamento. Antes, as referências às Divisões do Antigo Testamento são
abundantes (Lc 24.44; Cf. Mt 5.17; Lc 16.16,17). [26]
O mesmo pode ser dito Acerca do Novo Testamento. A
comunidade cristã primitiva recebeu o Antigo Testamento como o temos hoje (Cf.
Rm 3.2). Aqueles que foram comissionados por Cristo estavam cientes de que suas
palavras eram revelação, a ponto de colocarem-na ao lado do Antigo Testamento.
Segundo Vilhauer. [27]
O fato de que o cristianismo primitivo possui,
desde o início, uma “Escritura Sagrada” no posteriormente assim chamado AT e
que o usava, fornece critérios para o reconhecimento da canonicidade de um
escrito cristão: um escrito cristão somente atingiu a categoria de uma
‘escritura sagrada’, portanto, validade canônica, quando é tratado do mesmo
modo como o AT. Isso quer dizer, quando é usado como grafh,, e isso
se revela no modo de citação. Portanto não já pelo simples fato de um escrito
cristão ser citado tacitamente em outro escrito, e, sim, primeiro quando é
citado, como o Antigo Testamento, como grafh, - por meio de
fórmulas como le,gei h` grafh, (Gl 4.30), w`j kaqw.j
ge,graptai (1Co 1.31; Rm 1.17, et passim), ou le,gei to.
pneu/ma to. a[gion (Hb 3.7) – ele está no mesmo nível do AT, Sagrada
Escritura, “canônico”.
Percebemos que o critério revelacional, ao invés do
institucional, foi prioritário na aceitação de um corpus canônico
neotestamentário. O reconhecimento Apostólico [28], à semelhança do
reconhecimento profético, estava no fundamento para a autoridade do Novo
Testamento. Tal como no Antigo Testamento, o Novo Testamento também fornece as
indicações de sua canonicidade. Por exemplo, acerca das Cartas Paulinas, elas
deveriam ser lidas publicamente nas igrejas. Em 1Tessalonicenses 5.27, Paulo
“conjura” “pelo Senhor” que sua epístola fosse lida em todas as igrejas. Essa
ordem só faria sentido dentro da concepção de que o que Paulo escrevia teria
que ser considerado ensinamento do Senhor para a Igreja (Cf. Col 4.16). Com
essa convicção, Paulo considerava que suas palavras eram aquelas que o
“Espírito Santo” ensinava (1Co 2.13) de modo que suas instruções eram de
autoridade divina. Diz o Apóstolo: “Se alguém cuida ser profeta, ou
espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (1Co
14. 37). Não por menos que a Igreja recebeu seus escritos como Palavra de Deus
(1Tes 2.13; 2Tes 2.15) e que aqueles que não atentassem para suas Palavras, não
deveriam ter associação com os Crentes. Diz ele: “Mas, se alguém não
obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com
ele, para que se envergonhe” (2Tes 3.14).
De igual modo, outros escritos apostólicos também
foram colocados lado a lado com o Antigo Testamento. Assim fez Pedro, por
exemplo, pondo as Cartas de Paulo [29] ao lado das “demais Escrituras” que eram
deturpadas pelos indoutos. Paulo também não tem o menor constrangimento ao
ladear, chamando de Escritura, as palavras de Moisés junto ao Evangelho de
Lucas (1Tm 5.18; Dt 25.4; Lc 10.7). De acordo com o argumento de Grudem:
[30]
Se aceitamos os argumentos favoráveis ao ponto de
vista tradicional da autoria dos escritos neotestamentários, então a maior
parte do Novo Testamento pertence ao cânon por causa da autoria direta dos
apóstolos. Isso incluiria Mateus; João; Romanos a Filemon (todas as epístolas
paulinas); Tiago; 1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; e Apocalipse.
Mas, não consta acima os Evangelhos de Marcos,
Lucas, Atos, Hebreus e Judas. Ora, o que sabemos acerca de Jesus Cristo depende
da palavra escrita nestes Evangelhos. A proximidade dos relatos nas narrativas
é tanta que, a rejeição de um deles implicará a rejeição dos outros. [31]
Por exemplo, 606 dos 661 versículos de Marcos aparecem em Mateus. Dos
1068 versos de Mateus, cerca de 500 também se acham em Marcos. Há apenas 31
versos que estão em Marcos, mas não estão em Mateus e Lucas. [32] A
relação entre Lucas e Mateus e Marcos é também considerável. Mateus e Lucas
possuem 250 versos em comum, sem qualquer paralelo com Marcos. Ou seja, Mateus
e Lucas compartilham de informações que Marcos não possui. Lucas compartilha
380 versos com Marcos, embora com poucas variações. Se o Evangelho de Lucas é,
então, aceito como canônico pela comunidade primitiva, o mesmo se deu com Atos,
também escrito por Lucas. Além do mais, tais escritos não apostólicos
circularam lado a lado com os Escritos Apostólicos, tendo, portanto, o
testemunho pessoal dos Apóstolos para confirmação da autoridade divina dos
livros. [33]
Em tudo isso, verificamos que os Escritos
Apostólicos, diferentemente dos Apócrifos, foram recebidos como um “corpo de
verdade”, um “depósito” (1Tm 6.20, 21; 2Tm 2.14) ou, como diz o escritor Judas, “a
fé que uma vez foi dada aos santos” (Jd 3), certamente pelos Apóstolos
e Profetas, os Fundamentos da Igreja (Ef 2.20), de cujas palavras os Cristãos
deveriam lembrarem-se (Jd 17).
Frederick F. Bruce, [34] após exaustiva
pesquisa sobre a formação do Cânon, escreveu: “Portanto, todas as
reivindicações para transmitir uma revelação adicional... são alegações
falsas... se estas reivindicações são incorporadas nos livros que visam
substituir ou completar a Bíblia, ou assumir a forma de extra-tradições bíblicas,
tais reivindicações são proclamadas como dogmas pela autoridade eclesiástica”
E os outros escritos? Aplicação da abordagem
pressuposicional do Cânon das Escrituras
Bom, alguém talvez possa objetar afirmando que o
que foi escrito acima também possa ser aplicado aos Apócrifos (ou ao Corão, ou
aos Vedas etc), visto que a Igreja Romana aceita os “deuterocanônicos”. No
entanto, não foi se não em 1546, no Concílio de Trento, que a Igreja adotou
tais livros oficialmente. Historicamente, alguns dos Pais aceitaram alguns
Apócrifos do Novo Testamento. Por exemplo, a Epístola de Barnabé (c. 70-79
d.C), escrita por Clemente de Alexandria, faz parte do Códice Sinaítico,
manuscrito do século IV. Ao mesmo tempo, escritos apostólicos tiveram sua
autenticidade duvidada, como foi o caso de Hebreus, Tiago e Judas.
Não é que o testemunho histórico seja sem
importância. Historicamente, os 27 livros do Novo Testamento já eram aceitos na
comunidade pós-apostólica desde cedo. D. A. Carson [35] diz que “os
quatro evangelhos, Atos, as 13 epístolas paulinas, 1 Pedro e 1 João são
universalmente aceitos já bem cedo; a maior parte do restante do cânon do Novo
Testamento já está estabelecida à época de Eusébio (c. 260 – 340 d.C)”. Porém,
a primeira lista a incluir apenas os 27 livros como o temos hoje, é datada de
367 d.C numa carta escrita por Atanásio à igreja de Alexandria. No Ocidente, o
debate sobre a composição do Novo Testamento como o que temos hoje encerra-se
no Terceiro Concílio de Cartago (397), tendo a presença de Agostinho.
A despeito disso, devemos sempre apelar para a
autoridade final da Revelação. Os Protestantes, além dos fatores históricos,
devem rejeitar os Apócrifos (AT/NT) com base na reivindicação da autoridade
final, especialmente na coerência da revelação. Como exemplo, podemos
contrastar as palavras de Paulo em Primeira Coríntios 14.37, 38; em Gálatas 1.8
com as palavras do autor de Segundo Macabeus. Enquanto Paulo diz “se alguém
cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são
mandamentos do Senhor”(1Co 14.37), o autor de Macabeus diz: “Assim terminou
a história de Nicanor. Como desde esse tempo a cidade ficou em poder dos
hebreus, eu também porei aqui o ponto final em nossa história. Se consegui
deixá-la bem escrita e construída, isso é o que eu queria. Se saiu vulgar e
medíocre, fiz o melhor que podia” (2Mc 15.37,38). Em outra ocasião, o próprio
autor de Macabeus reconheceu que são “com textos da Lei e dos Profetas” que se
devia exortar ao encorajamento (15.9). Tais escritos não foram recebidos pelos
crentes da Antiga nem da Nova Aliança.
Sem contar os erros históricos, éticos e teológicos
contidos em tais livros. [36] Por exemplo, Tobias (c. 200 a.C) alega ter vivido
quando da revolta de Jeroboão (c. 931 a.C) e a conquista de Israel pela Assíria
(722 a.C), embora sua idade total, conforme registro, fosse de 158 anos (Cf.
Tob 1.3-5; 14.11). De acordo com Judite, o rei da Assíria era Nabucodosor (Jud.
1.1, 7). Enquanto as Escrituras ensinam que Deus criou o mundo a partir do nada
(Gn 1.1; Hb 6.3), o livro de Sabedoria ensina que havia matéria (7.17) e
Segundo Macabeus ensina a oração pelos Mortos (12.45, 46).
Por fim, perceba no quadro abaixo a maneira correta
de discutir o assunto: [37]
Idéia Incorreta de Canonicidade
|
Idéia Correta de Canonicidade
|
A Igreja é a Determinadora do Cânon.
|
A Igreja é a Descobridora do Cânon.
|
A Igreja é a Mãe do Cânon
|
A Igreja é a Filha do Cânon.
|
A Igreja é o Magistrado do Cânon.
|
A Igreja é a Ministra do Cânon.
|
A Igreja é a Reguladora do Cânon.
|
A Igreja é a Reconhecedora do Cânon.
|
A Igreja é o Juiz do Cânon.
|
A Igreja é a Testemunha do Cânon.
|
A Igreja é a Mestra do Cânon.
|
A Igreja é a Serva do Cânon.
|
Conclusão
Obviamente, questões outras são levantadas e
passíveis de muitas discussões. Dentre elas, a do fechamento do Cânon e a se há
ou não a possibilidade de novas revelações escritas.
Porém, talvez a mais contemporânea seja a
desconfiança do Cânon como o temos hoje. Especialmente no ressurgimento dos
escrito Gnóstico [38] e por Críticas cinematográficas ao Cristianismo
Tradicional [39], mas não menos em segmentos que agora não se denominam mais
como igrejas. [40] No primeiro caso, a crítica é histórica, procurando
compreender as razões que levaram ao Cristianismo a rejeitar os Gnósticos. [41]
Não é muito difícil reconhecer o motivo da rejeição dos Escritos
Gnósticos. Mas que a questão retorna ao cenário, tal como nos primeiros
séculos, como bem pode ser visto pelas obras polemistas do Dr. Bart Ehrman.
[42]
O segundo caso, e para mim mais preocupante, é
fruto do subjetivismo kierkegaardeano em nossa época. Por uma voz interior têm
rejeitado completamente as palavras das Escrituras. [43] Aliás, encontramos a formulação
de um “cânon dentro do cânon”. Agora, os mais importantes são os Evangelhos
(Mateus, Marcos, Lucas e João) e não as Cartas Paulinas ou mesmo o Antigo
Testamento. Certo dia ouvi um líder de uma comunidade dizer: “Se o que Isaías
ou Paulo dizem for contrário ao que Jesus Cristo diz, então fico com Cristo”.
Até parece extremamente piedoso, mas a implicação é
que a Escritura, de Gênesis a Apocalipse, deve conter alguma contradição e,
assim, não é ela toda revelação de Deus. Tal postura denunciaria, nas palavras
de F.F. Bruce, [44] “uma incapacidade de apreciar o que realmente é o cânon
[...]”. Além de criar duas realidades hermenêuticas: 1) a do próprio Cristo e;
2) a dos Apóstolos e Profetas. O resultado disso é a impressão de que os dois
se contradizem, como se as Palavras dos Apóstolos e Profetas também não fossem
as palavras de Cristo. [45] Por exemplo, Pedro disse que sobre os
Profetas estava o Espírito de Cristo (2Pd 1.10-12). O Evangelho de Paulo é o
mesmo do de Cristo (Ef 3.1 – 11) e rejeitá-lo ou corrompê-lo é tornar-se
anátema (Gl 1.8). Desse modo podia Jesus dizer que consultando Moisés, os
Profetas e os Escritos, encontrar-se-ia o próprio Cristo, a vida eterna (Jo.
5.39). A promessa feita a Abraão é chamada de Evangelho (Gal 3. 6) e quem fez
esta promessa foi a Escritura!
Para os neo-evangélicos, sempre que alguma coisa
soar (leia-se as palavras dos Profetas ou Apóstolos) diferente do que
supostamente Jesus falou, [46] fica-se com o nível infalível (as palavras
que concordam com Cristo) e rejeita-se o nível falível (as outras palavras). A
conclusão seria: NEM toda ESCRITURA é DIVINAMENTE inspirada. E também: ALGUMAS
profecias da Escritura SÃO de PARTICULAR INTERPRETAÇÃO (dos Profetas e
Apóstolos).
A posição, portanto, é contraditória e perigosa.
Assim, a implicação de tal postura é uma espécie de fideísmo. Porém, não temos
Cristo sem Escritura; não temos Escritura sem Cristo. É Christus, Solus
Christus EM Tota Scriptura, Sola Scriptura!
________________________
Notas: Para conferi-las, veja no final do link original.
Notas: Para conferi-las, veja no final do link original.
Sobre o autor: Ministro
da Igreja Presbiteriana do Brasil; Docente nos Seminários Presbiteriano do
Norte - Recife; e no Seminário Pentecostal do Nordeste nas áreas de
Teologia Exegética e Apologética. Mestrando em Teologia pelo Centro de
Pós-Graduação Andrew Jumper (Mackenzie). Casado e pai de duas filhas.
Fonte: Teologia Brasileira
.