Que o suicídio (autocheirian) é um crime em extremo
hediondo, transparece das razões seguintes: um suicida (autocheir) peca
contra Deus por tripudiar sua autoridade, porque é o único Senhor da vida; sua
bondade, por havê-lo preservado tão bondosamente entre os vivos; sua
providência, cuja ordem o suicida tudo faz para perturbar. Ele peca contra si
mesmo por violar a inclinação natural que inspira a cada um o amar a si próprio
e a nutrir a preservar sua própria carne (Ef 5.29). Ele peca contra o
Estado por destruir um de seus cidadãos; contra sua família por dilacerar
violentamente um membro e (talvez o principal) precipitar todos os seus
familiares em desgraça, tristeza e luto; contra a igreja e a religião por
estigmatizar o sistema cristão com ignomínia, causando tristeza a todos, escandalizando
os bons e ocasionando escárnio aos inimigos. Opõe-se à lei da natureza, a
qual obriga a cada um à auto-preservação; e à confiança e piedade em Deus, que
deve receber todos os males, ou descansando em nós ou nos ameaçando, como de
Deus; à sabedoria, porque este crime é concretizado não tanto por reflexão
quanto por fúria e impulso selvagem. Nem mesmo Sêneca pôde negar isto: "Um
homem sábio não deve dar ajuda a seu próprio castigo; é insensatez morrer pelo
medo da morte" (Epistle 70 [Loeb, 2:60,61]). Opõe-se a
justiça, porque o homem não é mais senhor de sua própria vida do que da de
outro. Ele é um servo que tem um senhor, um soldado que tem um general. Ele é
colocado em seu próprio posto; não deve ser irregular (leipotaktes) nem
deserdar a seu bel-prazer, mas deve deixar que outro o despeça. Isto é expresso
na mais excelente forma pelo próprio Epicteto, que ordena que os homens esperem
até que Deus dê o sinal (ekdechesthai ton theon) e nos descarte deste
serviço (Discourses 1.9.16 [Loeb, 1:68,69]). Opõe-se à força de
vontade, porque se origina de uma impaciência ante o mal enviado, ou do medo de
que este seja enviado, seja a fim de poder removê-lo ou evitá-lo. Daí Agostinho
dizer com propriedade que o suicídio não pertence à magnanimidade, e que
merecidamente se diz que tem maior alma quem pode suportar uma vida de
tribulações do que quem foge dela (CG 1.22* [FC 8:54]). Opõe-se ao
consentimento dos mais sábios entre os pagãos, seja gregos ou romanos:
Pitágoras, Platão, Aristóteles, Sêneca, Cícero entre outros, os quais confessam
que ele é perverso. Cabem aqui os exemplos de auto-homicídio (autocheirias)
registrados nas Escrituras, os quais são atribuídos somente aos incorrigíveis:
em Saul (1Sm 31.4); em Aitofel (2Sm 17.23); em Judas Iscariotes (Mt 27.5; At
1.18)
XXIV. O exemplo de Sansão (Jz 16.30) não favorece o suicídio (autocheiria),
porque nas ruínas da casa que ele derrubou ele se sepultou não menos que os
demais. Este foi um feito singular, perpetrado pela influência extraordinária
do Espírito Santo, como transparece tanto do apóstolo (Hb 11.34), que declara
que ele fez isso pela fé, baseado nas orações que ofereceu a Deus para a
obtenção de força extraordinária para este ato, e no fato de que elas foram
ouvidas (Jz 16.28). Deus aumentou sua força e lhe outorgou o desejado sucesso
para que assim ele fosse um eminente tipo de Cristo, que causa grande
destruição de seus inimigos por meio de sua morte e que quebra o jugo tirânico
posto no pescoço de seu povo. Finalmente, o desígnio não visava simplesmente a
uma vingança privada, mas à vindicação da glória de Deus, da religião e do
povo, visto que ele era uma pessoa pública e levantada por Deus dentro o povo
como vingador.
XXV. Tampouco os exemplos de Eleázar, irmão de Judas Macabeus, que
morreu ao rastejar-se debaixo de um elefante e ser esmagado pelo mesmo
(1Macabeus 6.43-45); e de Razias (que se matou com sua própria espada,
2Macabeus 14.41,42) favorecem o suicídio, porque são extraídos de livros
apócrifos. Não pode ser chamado generosidade, mas o cúmulo da pusilanimidade,
alguém voluntariamente precipitar-se em sua total destruição em virtude de um
mal incerto. Não fazem parte do presente caso os exemplos dos que desejaram
enfrentar perigos extremos em prol de seu país ou de amigos, com o intuito de
adquirir a tranquilidade e segurança de outros por meio de sua própria morte.
Uma coisa é alguém expor-se aos perigos motivado pela pressão da necessidade e
em resposta a uma chamado especial de Deus; outra é matar-se. Tampouco deve ser
considerado suicida (autocheir) quem entrega sua vida por outro, pois
então, ao entregar Cristo sua vida por nós, teria ele sido suicida (autocheir)
(o que ninguém diria).
XXVI. O ato dos que destroem seus navios (como às vezes ocorre com
marinheiros que, reduzidos a uma situação extrema, ateiam fogo a seu próprios
navios para que não se vejam sob a tirania dos inimigos; nem os instrumentos
militares, em seu poder, sejam revertidos pelo inimigos à destruição e seu país
nativo e para que as mesmas ações inflijam dano ao inimigo, eliminando-se
juntamente com o navio), embora seja aprovado por certos teólogos (ou afastado
da esfera do suicídio (autocheiria), porque não se destinavam à sua
própria destruição, mas à matança do inimigo e para o bem de seu país); não
obstante, de modo algum é aprovado por nós e por muitos outros. Por meio deste
ato, direta e voluntariamente, trazem a morte sobre si mesmos como uma causa
física e moral; e assim não podem escapar ao crime de auto-homicídio (autophonon).
Além disso, nele contrariam a confiança em Deus, limitando sua providência,
como se nele não existissem mil maneiras de escape mesmo quando presumimos que
estamos cercados de todos os lados. Opõem-se à prudência cristã porque comparam
uma certa e presente destruição com uma chance e um evento incertos, e atribuem
maior peso àquela. Poderia, se bem que quase vencidos, sair-se superiores; o
inimigo poderia poupar suas vidas; alguns poderiam salvar suas vidas nadando ou
de alguma outro maneira. Opõem-se à força, pois constitui bravura não abandonar
vilmente nosso posto desesperando da vitória ou da segurança, mas lutar até o
último suspiro. Opõe-se ao amor e à bondade para com as pessoas desvalidas: os
idosos, os fracos, os doentes, as crianças - a quem os próprios inimigos
poderiam poupar e em sua maioria costumam poupar. Portanto, tais pessoas não
podem ser absolvidas na culpa, segundo a regra do apóstolo (não praticar males
para que venham bens); nem pode alguma lei, seja de guerra ou do Estado, fazer
oposição à sanção divina. Embora tais atos às vezes possam ser escusados um
tanto, contudo não podem ser escusados de todo, quer digam que os pratiquem
como pessoas privadas que como servos públicos. Não pode a autoridade pública
obrigar-nos em oposição à autoridade divina. Tampouco pode alguma desvantagem
feita ao inimigo ou vantagem ao país ser tão grande que absolva a consiciência
aqui. Nem pode a intenção de injuriar o inimigo ser totalmente abstraída do
certíssimo conhecimento de destruir-se juntamente com o inimigo e de trazer
sobre si morte indubitável.
XXVII. É bom retribuir a Deus o que dado por ele, mas quando isso é
exigido de nós como devolvido de maneira devida; no entanto, não quando nem é
exigido nem devolvido da maneira devida. Admitimos que a morte é às vezes
melhor que a vida; porém infligida por outros, não buscada por nós mesmos. A
morte pode ser licitamente desejada, porém não buscada. Assim como a vida é
recebida só pela vontade divina, assim também não deve ser entregue a não ser
por sua ordem. É bravo desprezar aquele terribilíssimo mensageiro (to
phoberotaton) de Deus; porém, precipitar-se sobre ele voluntariamente é
temerário e insano (o que Aristóteles, Nichomachaen Ethics 3.8
[Loeb, 19:163-171]), ensina que não e bravura, mas covardia). E também o amor
pelo país, a segurança de outros e o anelo pela imortalidade, que podem impelir
à brava sujeição à morte enviada contra nós, não devem ter a mesma influência
em levar-nos a convidá-la quando não enviada.
XXVIII. Uma coisa é suportar a morte, deixar-se matar; sim, inclusive
apresentar-se a ela bravamente ante o chamado de Deus. Outra coisa é matar-se.
O primeiro caso, em algumas circunstâncias, é lícito, e Cristo, os mártires e
os heróis fizeram algo semelhante; porém não igualmente o segundo caso.
XXIX. "Dar o próprio corpo para ser queimado", no dizer de
Paulo (1Co 13.3), não é um ato temerário e destituído de valor, pela qual
alguém voluntaria e desnecessariamente se expõe à morte em prol da causa de
Deus. Antes, é um ato necessário e santo, pelo qual ele enfrenta o martírio
atendendo ao chamado de Deus e não recusa tal chamado, ou mentindo, ou negando
a verdade pelo amor da família ou do mundo, quando lhe cabe por sorte ser
levado aos tribunais dos pagãos pelos inimigos do evangelho.
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Fonte: François Turretini, Compêndio de
Teologia Apologética, Livro II, Ed. Cultura Cristã, págs. 153-156.