No livro O Grande Conflito, existe uma declaração
que Leandro Quadros considera a síntese do pensamento de Ellen White sobre a
predestinação calvinista. Ei-la:
Estas monstruosas doutrinas são essencialmente as
mesmas que o ensino posterior dos educadores e teólogos populares, de que não
há lei divina imutável como norma do que é reto, mas que o padrão da moralidade
é indicado pela própria sociedade, e tem estado constantemente sujeito a
mudança. Todas estas idéias são inspiradas pelo mesmo espírito superior, sim,
por aquele que mesmo entre os habitantes celestiais, sem pecado, iniciou sua
obra de procurar derruir as justas restrições da lei de Deus.
Sai daí a base de Quadros para afirmar que a
doutrina calvinista é satânica. Essa afirmação encontra-se no capítulo 14, o
mesmo em que White menciona com aprovação o nome e as doutrinas de eminentes
predestinistas, entre os quais Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio, John Knox,
John Bunyan, Richard Baxter, John Flavel, Joseph Alleine e George Whitefield: “O
grande princípio mantido por aqueles reformadores... foi a autoridade infalível
das Escrituras Sagradas como regra de fé e prática... A Bíblia era a sua autoridade,
e por seus ensinos provavam todas as doutrinas e reivindicações”, disse ela
sobre todos eles. Soa incoerente ela em seguida classificar a predestinação,
juntamente com o antinomianismo, como“monstruosas doutrinas”, inspiradas
por Lúcifer? Soa, mas coerência não é a característica principal dos
adventistas.
No entanto, há um fato desconhecido por muitos
adventistas: a declaração não é da pena de Ellen White. Trata-se de uma
alteração feita W. W. Prescott na edição de 1911 do Grande Conflito. Surpreso
pelo espírito de profecia precisar ser revisado e corrigido? Mas foi, aqui e em
outros 105 pontos, apenas nessa edição da obra. O que White escreveu, e que
consta na edição de 1888, é: "Esta monstruosa doutrina é
essencialmente a mesma coisa que a alegação dos romanistas, de que ‘o Papa pode
dispensar acima da lei, e do errado fazer certo, pela correção e mudança nas
leis”, e que ‘ele pode pronunciar sentenças e julgamentos em
contradição... com a lei de Deus e dos homens’”. O filho de Ellen White
questionou Prescott sobre a alteração e este a justificou dizendo que a
afirmação da senhora White estava errada e que os adventistas se veriam em
dificuldades se alguém pedisse a fonte da declaração.
Além do todo da redação ter sido alterado, na
versão original, “monstruosa doutrina” está no singular e se refere ao
antinomismo apenas e não ao calvinismo conjuntamente. A autora compara “esta
monstruosa doutrina” com a revindicação romanista de que o Papa pode mudar as
leis de Deus e dos homens, dizendo em seguida que “ambas revelam a inspiração”
do Diabo. O singular, a referência ao romanismo e a palavra “ambas” tornam
gramaticalmente impossível inserir ali a“predestinação calvinista”, como
faz Leandro Quadros. São dois pontos a se ter em conta: as palavras não são de
Ellen White e ela não fez referência direta ou indireta à doutrina da
predestinação, mas unicamente ao antinomianismo e ao romanismo.
Seja como for, o fato é que Ellen White está
trabalhando sobre declarações que não são, de forma alguma, expressões da
doutrina da predestinação conforme entendida pelos calvinistas. Prova isso a
própria fonte utilizada por ela, a Cyclopaedia of Biblical, theological, and
ecclesiastical literature, de John McClintock e James Strong. Esta obra atribui
a origem moderna do antinomianismo a John Agricola, um dos primeiros
cooperadores de Lutero. Compreendendo erradamente algumas palavras de Lutero e
Melâncton sobre a justificação sem as obras da lei, Agricola apregoou a
doutrina antinomiana e foi por isso repreendido severamente por Lutero, não uma
mas várias vezes, até que admitiu publicamente seu erro e se reconciliou com
Lutero. Desnecessário dizer que Lutero era mais predestinista que Calvino e
combateu duramente a teoria do livre-arbítrio, veja-se seu Nascido Escravo para
confirmar.
Segundo a mesma obra, o antinomianismo foi
defendido nos dias de Oliver Cromwell por um tal John Saltmarsh, que entre
outras coisas defendia o universalismo e a justificação eterna, ou seja, que os
eleitos eram justificados antes mesmo de nascerem, daí sua declaração de que “as
ações ímpias que cometem não são realmente pecaminosas, nem devem considerar-se
como violação da lei divina por parte deles, e que em conseqüência não têm
motivo quer para confessar os pecados, quer para com os mesmos romper pelo
arrependimento”, mencionada por White. Saltmarsh foi combatido por Samuel
Rutherford, calvinista escocês que participou da Assembleia de Westminster.
Mais tarde, o também calvinista Richard Baxter iria refutar seus ensinos.
Ao lado de Saltmarsh, os principais antinomianos da
época foram Crisp, Richardson, Hussey, Eaton e Town, segundo os mesmos
McClintock e Strong. E estes foram atacados e refutados com sucesso pelos
calvinistas Thomas Gataker, Andrew Fuller, Richard Baxter e, principalmente,
por Daniel Williams, além de outros. Embora escrita por teólogos de orientação
wesleyana, a obra é cuidadosa em distinguir entre hiper-calvinismo e
antinomianismo de um lado e o calvinismo dos reformadores de outro. Em nenhum
lugar a obra referenciada menciona o calvinismo como responsável pelo
antinomianismo, portanto, se White pretendeu dar essa impressão, agiu de má fé,
se não foi o caso, seus intérpretes é que a compreendem equivocadamente ou a
distorcem deliberadamente no calor do debate.
Creio que as palavras de Charles Spurgeon,
extraídas de um sermão pregado em 1859, deixam clara a posição calvinista
conforme definida em Wesminster e Dort:“Quantos danos tem sido causados às
almas dos homens por homens que só tem pregado uma parte, e não todo o conselho
de Deus! Meu coração sangra por muitas famílias sobre as quais a doutrina
antinomiana conquistou domínio... Não posso imaginar instrumento mais apto, nas
mãos de satanás, para arruinar almas do que o ministro que diz aos pecadores
que não é dever deles arrepender-se de seus pecados ou crer em Cristo”. Em
seu The History of Dissenters, no qual retrata a época referida, James Bennett
diz que o antinomianismo “não resulta do genuíno calvinismo”, como
aquele que “era familiar aos escritos e práticas dos grandes reformadores”, mas
do “erro que tem sido enxertado por aqueles que são mais ansiosos para abraçar
certas partes do que estudar para entender o todo”.
Em seu texto, Leandro Quadro menciona outras
citações feitas por Ellen White no Grande Conflito, recorrendo a John Wesley. A
obra de John Wesley não tão fácil de se analisar e cada citação deve ser
analisada em sua ordem no tempo, além do contexto em que foi feito. Demanda
tempo e requer espaço, ambos me faltam no momento, a Providência dirá se os
terei no futuro. Por ora, basta-nos concluir que a citação feita por Leandro
Quadro como sendo da senhora White e contra o calvinismo não é nem uma coisa,
nem outra.
Soli Deo Gloria
Fonte: Cinco Solas
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