E
os melhores dentre nós podem cometer escândalo contra essa disposição
misericordiosa, caso não estejamos vigilantes contra aquela liberdade que nossa
disposição carnal estará pronta para dela tirar. Desse modo, arrazoamos, se
Cristo não apagará o pavio que fumega, que necessidade temos de recear que
qualquer negligência de nossa parte possa nos trazer para uma condição sem
conforto? Se Cristo não apagará, o que poderá fazê-lo?
Tu
conheces a interdição do apóstolo, qual seja, “não extingais o Espírito” (1 Ts
5.19). Tais cautelas para não apagar são santificadas pelo Espírito como meio
de não apagar. Cristo desempenha seu ofício de não apagar excitando adequados
esforços em nós; e ninguém há mais solícito no uso dos meios do que aqueles que
estão mais certos de seu bom êxito.
A
razão é esta: os meios que Deus reservou para o efetuar de qualquer coisa estão
inclusos no propósito que ele tem de fazer aquilo se suceder. E isso é um
princípio tido por certo, mesmo nas matérias civis; pois quem, se de
antemão soubesse que este seria um ano frutífero, penduraria pois seu
arado e descuidaria da lavoura?
Por
isso, o apóstolo estimula-nos a partir da expectativa certa de uma bênção (1 Co
15.57,58), e tal encorajamento, que parte do bom desfecho da vitória, é pensado
para nos incitar, e não para nos dissuadir. Se formos negligentes no exercício
da graça recebida e do uso dos meios prescritos, permitindo que nossos
espíritos sejam oprimidos com muitos e variados cuidados desta vida, e não
tivermos cuidado com os desencorajamentos momentâneos, em razão desse tipo de
descuido, Deus, em seu sábio cuidado, permite que freqüentemente caiamos em uma
condição pior em nossos sentimentos do que aqueles que nunca foram tão
iluminados. Todavia, em misericórdia ele não tolerará que sejamos tão inimigos
de nós mesmos a ponto de inteiramente negligenciar essas faíscas uma vez
acendidas. Caso fosse possível que devêssemos abandonar todo esforço em
absoluto, então poderíamos procurar por não outro resultado senão apagar;
porém, Cristo tomará o cuidado dessa fagulha e nutrirá essa sementinha, para
que ele sempre preserve na alma algum grau de cuidado.
Se
fizermos um confortador uso disso, devemos considerar todos aqueles meios pelos
quais Cristo preserva a graça iniciada; tais como, primeiro, a santa comunhão,
pela qual um cristão aquece outro. “Melhor é serem dois do que um” (Ec 4.9).
“Não ardia em nós o nosso coração?”, disse os discípulos (Lucas 24.32). Em
segundo lugar, muito mais comunhão com Deus nos santos deveres, tais como
meditação e oração, que não apenas acende como agrega um lustre à alma. Em
terceiro lugar, sentimos por experiência o sopro do Espírito ir junto com o de
seus ministros. Por essa razão o apóstolo entrelaça esses dois versículos em
um: “Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias” (1 Ts 5.19,20).
Natã, por poucas palavras, assoprou as centelhas que definhavam em Davi. Em vez
de Deus aceitar que seu fogo em nós se extinga, ele enviará algum Natã ou
outro, e algo é sempre deixado em nós para juntar com a Palavra, desde que da
mesma natureza dela; como um carvão que tem fogo em si rapidamente ajunta mais
fogo para si. O pavio que fumega facilmente pegará fogo.
Em
quarto lugar, a graça é fortalecida pelo seu exercício: “Levanta-te,
pois, e faze a obra, e o Senhor seja contigo” (1 Cr 22.16), disse Davi a seu
filho Salomão. Estimula a graça que está em ti, pois desse modo santas moções
viram resoluções, resoluções, prática, e prática, uma preparada prontidão para
toda boa obra.
Não
obstante, que lembremos que a graça é aumentada, no seu exercício, não em
virtude do exercício em si, mas por Cristo, que, pelo seu Espírito, flui na
alma e nos traz mais próximos de si próprio, a fonte, assim instilando tal
conforto que o coração é mais adiante dilatado. O coração de um cristão é o
jardim de Cristo, e suas graças são como tantas doces especiarias e flores as
quais, quando seu Espírito sopra sobre elas, emitem um aroma agradável.
Portanto, mantenha a alma aberta para acolher o Espírito Santo, pois ele
introduzirá continuamente forças adicionais para vencer a corrupção, e isso,
sobretudo, no dia do Senhor. João estava no Espírito no dia do Senhor,
precisamente em Patmos, o lugar de seu banimento (Ap 1.10). Então, os golpes de
vento do Espírito soprarão de modo mais forte e meigo.
Como
vimos, portanto, para o consolo dessa doutrina, que não favoreçamos nossa
preguiça natural, mas antes nos exercitemos na piedade (1 Tm 4.7), e labutemos
para manter esse fogo sempre queimando sobre o altar de nossos corações. Que
preparemos nossas lâmpadas diariamente, e ponhamos dentro óleo novo, e alcemos
nossas almas mais e mais alto ainda.
Descansar
em uma boa condição é contrário à graça, que não pode senão promover a si para
uma medida ainda maior. Que ninguém torne essa graça “em lascívia” (Judas 4).
As fraquezas são uma razão de humildade, não uma justificativa à negligência
nem um encorajamento à presunção. Longe estejamos de sermos maus, pois que
Cristo é bom para que aquelas brasas de amor nos derretam. Logo, aqueles em
quem a consideração de tal ternura de Cristo não opera dessa forma bem podem
suspeitar de si próprios. Certamente, onde a graça está, a corrupção é “como
vinagre para os dentes, como fumo para os olhos” (Pv 10.26). E, por conseguinte,
eles labutarão, considerando o seu próprio conforto e, da mesma forma, o mérito
da religião e a glória de Deus, para que a luz deles possa irromper. Se uma
centelha de fé e amor é tão preciosa, que honra será ser rico em fé! Quem não
prefere antes andar na luz, e nos confortos do Espírito Santo, a viver em um
estado sombrio, confuso? E a velejar a todo pano para o céu a ser agitado
sempre com medos e dúvidas? A presente dificuldade no conflito contra um pecado
não é tanta quanto aquela perturbação que qualquer corrupção favorecida trará
sobre nós posteriormente. A paz verdadeira está em conquistar, não em se
entregar. O conforto tencionado neste texto é para aqueles que querem fazer
melhor, porém, descobrem que suas corrupções os obstruem; que estão em uma tal
bruma, que amiúde não podem dizer o que pensar de si mesmos; que querem
acreditar e, todavia, com freqüência temem que não acreditam; e que pensam que
não pode ser que Deus seja tão bom para miseráveis tais como eles, e, contudo,
não permitem tais receios e dúvidas em si próprios.