ATOS 17:11
“Ora, os bereanos eram de caráter mais nobre do que
os de Tessalônica, pois peceberam a mensagem com grande avidez, e examinavam
todos os dias as Escrituras, para ver se o que Paulo dizia era verdade.
Quando ministros e crentes mencionam os bereanos,
eles geralmente têm em mente um grupo de indivíduos que tinham discernimento, e
que não eram facilmente enganados por qualquer nova mensagem que aparecesse,
pois eles eram cuidadosos em checar tudo o que um pregador dizia com a
Escritura. Esse não era um povo crédulo, e eles não aceitavam qualquer coisa
que alguém ensinasse, a menos que viesse diretamente das Escrituras. E visto
que a Escritura chama esse povo de “nobre”, é apropriado imitar o seu exemplo.
Este em si mesmo é um ensino bíblico sadio, e
outras partes da Escritura também o confirmam. Por exemplo, 1 Tessalonicenses
5:21 diz: “Mas ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom”,
e 1 João 4:1 adverte: “Amados, não creiam em qualquer espírito, mas
examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos
profetas têm saído pelo mundo”.
Contudo, ao dirigir a maior parte da sua atenção
para a última porção de Atos 17:11, que diz que os bereanos “examinavam
todos os dias as Escrituras, para ver se o que Paulo dizia era verdade”,
muitas pessoas têm falhando em reconhecer o ponto principal do versículo, e um
dos pontos principais da primeira metade de Atos 17.
A virtude real dos bereanos é afirmada pela ênfase
principal do versículo, e não na explicação ou qualificação da ênfase principal
do versículo. Visto que os bereanos são freqüentemente apresentados como
modelos dignos de nossa imitação, uma visão distorcida ou parcial de sua
virtude resultará numa imitação distorcida ou parcial, e assim, um caráter
defeituoso precisamente na área na qual desejamos aprender deles.
A ênfase principal do versículo 11 é facilmente
captada se simplesmente lermos o versículo inteiro, e então o versículo no
contexto da primeira metade de Atos 17.
A palavra traduzida como “nobre” pode
se referir à nascimento nobre ou caráter nobre. Ela é claramente usada no
último sentido em nosso versículo. Quanto à de que forma os bereanos eram
nobres, o versículo aplica a palavra a eles em contraste com o
caráter dos “de Tessalônica”. Portanto, para entender o caráter nobre dos bereanos,
devemos primeiramente retornar ao começo de Atos 17 e ler sobre os
tessalonicenses:
"Tendo passado por Anfípolis e Apolônia,
chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga judaica. Segundo o seu costume,
Paulo foi à sinagoga e por três sábados arrazoou com eles a partir das
Escrituras, explicando e provando que o Cristo deveria sofrer e ressuscitar
dentre os mortos. E dizia: Este Jesus que lhes proclamo é o Cristo. Alguns
dos judeus foram persuadidos e se uniram a Paulo e Silas, bem como muitos gregos
tementes a Deus, e não poucas mulheres de alta posição."(Atos
17:1-4)
Sempre que Paulo chegava numa nova localidade em
suas jornadas missionárias, era o seu costume visitar primeiro as sinagogas
locais, de forma que ele pudesse pregar aos judeus (veja v. 10, 17).[1] Os
judeus professavam a fé na Escritura, e deveria ser natural para eles abraçar
avidamente uma mensagem que declarasse o perfeito cumprimento das promessas da
Escritura. Assim, Paulo “discutiu com eles a partir das Escrituras”,
e era sobre a base da Escritura que ele pregava o evangelho, e isso significava “explicar
e provar que o Cristo deveria sofrer e ressuscitar dentre os mortos”.
Como resultado, vários do povo (tanto judeus como
gregos) creram e foram salvos. Mas estes não eram os de “Tessalônica”, dos
quais o versículo 11 está falando. Antes, os problemas parecem começar a partir
do versículo 5:
"Mas os judeus ficaram com inveja. Reuniram
alguns homens perversos dentre os desocupados e, com a multidão, iniciaram um
tumulto na cidade. Invadiram a casa de Jasom, em busca de Paulo e Silas, a fim
de trazê-los para o meio da multidão. Contudo, não os achando, arrastaram Jasom
e alguns outros irmãos para diante dos oficiais da cidade, gritando: Esses
homens, que têm causado alvoroço por todo o mundo, agora chegaram aqui, e Jasom
os recebeu em sua casa. Todos eles estão agindo contra os decretos de César,
dizendo que existe um outro rei, chamado Jesus. Ouvindo isso, a multidão e os
oficiais da cidade ficaram agitados. Então receberam de Jasom e dos outros a
fiança estipulada e os soltaram." (Atos 17:5-9)
Como resultado de uma resistência zelosa à mensagem
do evangelho, esses judeus (Atos 17:5-9) incitaram um tumulto na cidade contra
os apóstolos. Eles manipularam a situação contra esses pregadores do evangelho
fazendo acusações enganosas contra eles.
O versículo 10 mostra como os cristãos ajudaram
Paulo e Silas a escaparem para Beréia. Política religiosa é um mal horrível, e
ela é abundante em nossos dias. Até mesmos nos melhores círculos cristãos, os
conflitos religiosos são freqüentemente realizados, não pelo discurso racional,
mas incitando também a multidão, e apelando à pressão social e política. Um
lado do assunto é freqüentemente preferido pela multidão e pelas instituições, e
assim os argumentos bíblicos e os apelos racionais são freqüentemente
suprimidos e ignorados.
Algumas vezes uma aparência de refutação pode
aparecer, mas mesmo então, freqüentemente a posição antibíblica e irracional
ainda é apoiada mais por sua popularidade com as pessoas e as instituições do
que pela revelação bíblica. Mas aqueles que permanecem firmes sobre a Escritura
e a Razão[2] não precisam temer, isto é, exceto pelas próprias almas
daqueles que os perseguem.
Em todo o caso, é no contraste com esses tessalonicenses
que o versículo 11 louva o caráter nobre dos bereanos. Conseqüentemente, devemos
esperar que a virtude dos bereanos seja o oposto do vício dos tessalonicenses.
Imediatamente percebemos que essa virtude não pode ser aquela deles checarem a
pregação dos apóstolos; de outra forma, isso implicaria que o vício dos
tessalonicenses era o de que eles criam muito rápido no
evangelho, mas os versículos 5-9 nos diz o oposto.
A virtude dos bereanos era o oposto do vício dos
tessalonicenses em que os bereanos “receberam a mensagem com grande
avidez”. Diferentemente dos judeus em Tessalônica, os bereanos não
duvidaram ou resistiram à mensagem do evangelho, e eles não perseguiram os
pregadores ou lhes deram tempos difíceis. Essa é a ênfase principal no
versículo 11, e quando procurando imitar os bereanos, essa é a característica
que devemos primeiro reconhecer e considerar.
Muitos comentários falham em reconhecer essa ênfase
primária ou lhe dar o lugar devido em suas exposições, e nesse momento eu não
me lembro de ter ouvido nem sequer um ministro que tenha feito desse o ponto
principal em seu sermão, quando ele pregou sobre o versículo 11. Eu não duvido
que alguns ministros tenham reconhecido o ponto primário do versículo e tenham
pregado de acordo com ele, mas esses exemplos parecem ser pouquíssimos. Pelo
contrário, o versículo é mui freqüentemente usado para ensinar o discernimento,
e duma forma que obscurece a característica positiva da aceitação ávida da
palavra de Deus.
Juntamente com muitos outros, Matthew Henry é uma
notável exceção nessa negligência. Para um comentário que tinha que cobrir tantos
assuntos, ele, apesar disso, devota uma seção significante sobre como os
bereanos eram ávidos em receber o evangelho. A seção que imediatamente segue,
sobre discernimento, é apenas levemente longa. Ele escreve:
Eles nem prejulgaram a causa, nem foram embora com
inveja dos administradores dela, como os judeus em Tessalônica o fizeram, mas
muito generosamente deram tanto a ela como a eles uma justa audiência... Eles
não fizerem querelas com a palavra, nem encontraram defeito, nem procuraram
ocasião contra os pregadores dela; mas deram-lhe boas vindas, e colocaram uma
construção cândida sobre tudo o que foi dito. Nisso eles eram mais nobres do
que os judeus em Tessalônica...[3]
É somente com isso em mente que podemos entender
apropriadamente o versículo 11, e entender com que atitude os bereanos
“examinaram as Escrituras”. Os bereanos eram nobres em caráter, não porque eles
eram duvidosos ou difíceis de convencer, mas porque eles eram ensináveis e
receptivos ao evangelho. Por essa razão, algumas traduções e comentários
sugerem traduzir “nobres” como “liberais”, “generosos”, “despreconceituosos” ou
“mente-aberta”.[4]
Contudo, essa “mente-aberta” é ao mesmo tempo
específica e restrita. É nesse ponto que deveríamos proceder para a parte final
do versículo, que nos diz que, embora os bereranos fossem ávidos para ouvir a
palavra de Deus, eles não eram de forma alguma pessoas tolas ou crédulas. E
porque já temos considerado o ponto principal do versículo, que é dizer que
eles eram ensináveis e receptivos ao evangelho, estamos prontos agora para
considerar como essa abertura é qualificada.
Eles não eram como o povo de Atenas, que “não
se preocupavam com outra coisa senão falar ou ouvir as últimas novidades” (v.
21). Eles não eram ávidos para ouvir os apóstolos por causa de uma mera
curiosidade ou para estímulo ou entretenimento intelectual, e eles não estavam
simplesmente abertos para qualquer nova teoria ou doutrina que pedisse sua
atenção. Antes, eles estavam interessados em aprender a verdade, e, verificar
se “aquelas coisas eram assim” (KJV), e não simplesmente em
ouvir algo que soasse interessante ou incomum. E para determinar se “aquelas
coisas eram assim”, ou seja, as que Paulo pregava, eles “examinavam
as Escrituras”.
Assim, eles mostraram que eles tinham “mente-aberta”,
não no sentido de que eles eram tolos ou crédulos, e ainda menos relativistas
ou pluralistas. Eles não estavam abertos para qualquer coisa ou qualquer um.
Mas, aspirando a verdade, eles mostraram que sua abertura era racional, e por
examinar as Escrituras, eles mostraram que sua abertura era bíblica, de forma
que todas as teorias e doutrinas não-bíblicas eram excluídas logo no
início. Isso também é parte de seu caráter nobre, e é também o que os
crentes hoje devem imitar.
Além do mais, visto que é dessa maneira e sobre
essa base que “muitos deles creram”, isso mostra também que a sua
resposta “não era uma mera resposta emocional ao evangelho, mas uma baseada na
convicção intelectual”.[5] A fé deles era uma fé genuína, uma convicção
intelectual sobre a verdade revelada, e uma vida espiritual fundamentada nessa
convicção bíblica e racional pode sobreviver aos testes de perseguição e
tentação.
Assim como devemos seguir seu exemplo como
ouvintes, não deveríamos ficar satisfeitos com nada menor da nossa audiência
como pregadores. E isso significa que os ministros cristãos devem se esforçar
para serem o mesmo tipo de pregadores que os bereanos ouviam, de forma que,
como Paulo, devemos pregar e arrazoar “a partir das Escrituras,
explicando e provando” Cristo aos nossos ouvintes.
Ainda, por causa da forma desequilibrada com que
muitas pessoas têm aplicado nosso versículo, devemos novamente relembrar a nós
mesmos de seu ponto principal, e a razão principal pela qual os bereanos foram
chamados nobres. Eles não foram elogiados porque eram suspeitos e hostis, mas
porque eram ávidos em ouvir o evangelho.
A atitude deles era: “Você tem nos trazido uma boa
mensagem de Deus, vejamo-la também a partir das Escrituras”, e não, “Não nos
faça de estúpidos e crédulos. Não vamos deixar você partir impune, e não
queremos crer em nada que você diga, a menos que a prove para nós a partir das
Escrituras”. Ora, a primeira atitude não reflete qualquer credulidade também,
mas é caracterizada por um caráter nobre, uma abertura à revelação de Deus.
Deus não é agradado quando o discernimento se torna
resistência e dureza de coração disfarçado. Como a Escritura diz: “Hoje,
se ouvirem a sua voz, não endureçam o coração” (Hebreus 4:7). Cristãos
de caráter “nobre” não são maliciosamente suspeitos, mas são inteligentemente
ensináveis. Eles respeitam os mensageiros de Deus; são ávidos em ouvir a
Palavra de Deus; e rápidos para crer e obedecer.
Assim, se vamos imitar os nobres bereanos, então
recebamos prontamente a palavra de Deus de ministros fiéis, e seremos tão
ávidos em afirmar e praticar a verdade que eles proclamam que examinaremos a
Escritura“todos os dias” (v. 11), de forma que construiremos nossa
fé e adoração correta sobre a firme rocha da revelação também.
Continuemos a ensinar os crentes a “testar todas as
coisas”, mas quando falarmos sobre os bereanos, relatemos também acuradamente a
natureza de seu caráter nobre, que eles eram ávidos em ouvir e receber a
palavra de Deus. E nós não devemos perder essa devoção simples à palavra de Deus,
mesmo que pensemos já ter adquirido muito conhecimento e discernimento; antes,
permaneçamos humildes, ensináveis – e nobres.