A doutrina que me proponho a considerar neste
artigo foi de fundamental importância na Reforma Protestante do Século XVI. Em
contraposição, por um lado, à doutrina católica romana de uma tradição oral
apostólica e, por outro lado, ao misticismo dos assim chamados entusiastas ou
reformadores radicais, os Reformadores defenderam a doutrina da autoridade
suprema das Escrituras. Essa foi, portanto, a sua resposta à autoridade da
tradição eclesiástica e do misticismo pessoal.
A autoridade
suprema das Escrituras também é uma doutrina puritano-presbiteriana. A ela os
puritanos tiveram que apelar freqüentemente na luta que foram obrigados a
travar contra as imposições litúrgicas da Igreja Anglicana.1 A Confissão de Fé
de Westminster professa a referida doutrina em três parágrafos do seu primeiro
capítulo. No quarto parágrafo, ela trata da origem ou fundamento da autoridade
das Escrituras:
A autoridade
da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende
do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a Palavra
de Deus.
O parágrafo
quinto aborda a questão da certeza ou convicção pessoal da autoridade das
Escrituras:
Pelo
testemunho da Igreja podemos ser movidos e incitados a um alto e reverente
apreço pela Escritura Sagrada; a suprema excelência do seu conteúdo, a eficácia
da sua doutrina, a majestade do seu estilo, a harmonia de todas as suas partes,
o escopo do seu todo (que é dar a Deus toda a glória), a plena revelação que
faz do único meio de salvar-se o homem, as suas muitas outras excelências
incomparáveis e completa perfeição são argumentos pelos quais abundantemente se
evidencia ser ela a Palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza
da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do
Espírito Santo que, pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações.
O décimo e
último parágrafo desse capítulo confere às Escrituras (a voz do Espírito Santo)
a palavra final para toda e qualquer questão religiosa, reconhecendo-a como
supremo tribunal de recursos em matéria de fé e prática:
O Juiz
Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e
por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos
antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares; o
Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o
Espírito Santo falando na Escritura.
Em dias como
os que estamos vivendo, em que cresce a impressão de que o evangelicalismo
moderno (particularmente o brasileiro) manifesta profunda crise teológica,
eclesiástica e litúrgica,2 convém considerar novamente essa importante doutrina
reformado-puritana. Convém uma palavra de alerta contra antigas e novas
tendências de usurpar ou limitar a autoridade da Palavra de Deus. Tal é o
propósito deste artigo.
I. Definição
O que queriam dizer os Reformadores ao professarem a doutrina da autoridade das Escrituras? Que, por serem divinamente inspiradas, elas são verídicas em todas as suas afirmativas. Segundo esta doutrina, as Escrituras são a fonte infalível de informação que estabelece definitivamente qualquer assunto nelas tratado: a única regra infalível de fé e de prática, o supremo tribunal de recursos ao qual a Igreja pode apelar para a resolução de qualquer controvérsia religiosa.
Isto não
significa que as Escrituras sejam o único instrumento de revelação divina. Os
atributos de Deus se revelam por meio da criação: a revelação natural (cf. Sl
19:1-4 e Rm 1:18-20). Uma versão da sua lei moral foi registrada em nosso
coração: a consciência (cf. Rm 2:14-15), "uma espiã de Deus em nosso
peito," "uma embaixadora de Deus em nossa alma," como os
puritanos costumavam chamá-la.3 A própria pessoa de Deus, o ser de Deus,
revela-se de modo especialíssimo no Verbo encarnado, a segunda pessoa da
Trindade (cf. Jo 14.19; Cl 1.15 e 3.9).
Mas, visto
que Cristo nos fala agora pelo seu Espírito por meio das Escrituras, e que as
revelações da criação e da consciência não são nem perfeitas e nem suficientes
por causa da queda, que corrompeu tanto uma como outra, a palavra final,
suficiente e autoritativa de Deus para esta dispensação são as Escrituras
Sagradas.
II. Base Bíblica
A base bíblica da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras é tanto inferencial como direta.
A. Base Inferencial
É inferencial, porque decorre do ensino bíblico a respeito da inspiração divina das Escrituras. Visto que as Escrituras não são produto da mera inquirição espiritual dos seus autores (cf. 2 Pe 1.20), mas da ação sobrenatural do Espírito Santo (cf. 2 Tm 3.16 e 2 Pe 1.21), infere-se que são autoritativas. Na linguagem da Confissão de Fé, a autoridade das Escrituras procede da sua autoria divina: "porque é a Palavra de Deus."
Isto não
significa que cada palavra foi ditada pelo Espírito Santo, de modo a anular a
mente e a personalidade daqueles que a escreveram. Os autores bíblicos não
escreveram mecanicamente. As Escrituras não foram psicografadas, ou melhor,
"pneumografadas." Os diversos livros que compõem o cânon revelam
claramente as características culturais, intelectuais, estilísticas e
circunstanciais dos diversos autores. Paulo não escreve como João ou Pedro.
Lucas fez uso de pesquisas para escrever o seu Evangelho e o livro de Atos.
Cada autor escreveu na sua própria língua: hebraico, aramaico e grego. Os
autores bíblicos, embora secundários, não foram instrumentos passivos nas mãos
de Deus. A superintendência do Espírito não eliminou de modo algum as suas
características e peculiaridades individuais. Por outro lado, a agência humana
também em nada prejudicou a revelação divina. Seus autores humanos foram de tal
modo dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo que tudo o que foi
registrado por eles nas Escrituras constitui-se em revelação infalível,
inerrante e autoritativa de Deus. Não somente as idéias gerais ou fatos
revelados foram registrados, mas as próprias palavras empregadas foram
escolhidas pelo Espírito Santo, pela livre instrumentalidade dos escritores.4
O fato é
que, por procederem de Deus, as Escrituras reivindicam atributos divinos: são
perfeitas, fiéis, retas, puras, duram para sempre, verdadeiras, justas (Sl
19.7-9) e santas (2 Tm 3.15).5
B. Base Direta
Mas a doutrina reformada da autoridade das Escrituras não se fundamenta apenas em inferências. Diversos textos bíblicos reivindicam autoridade suprema.
Os profetas
do Antigo Testamento reivindicam falar palavras de Deus, introduzindo suas
profecias com as assim chamadas fórmulas proféticas, dizendo: "assim diz o
Senhor," "ouvi a palavra do Senhor," ou "palavra que veio
da parte do Senhor."6 No Novo Testamento, vários textos do Antigo
Testamento são citados, sendo atribuídos a Deus ou ao Espírito Santo. Por
exemplo: "Assim diz o Espírito Santo..." (Hb 3:7ss).7
A autoridade
apostólica também evidencia a autoridade suprema das Escrituras. O Apóstolo
Paulo dava graças a Deus pelo fato de os tessalonicenses terem recebido as suas
palavras "não como palavra de homens, e, sim, como em verdade é, a palavra
de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que
credes" (1 Ts 2:13). Que autoridade teria Paulo para exortar aos gálatas
no sentido de rejeitarem qualquer evangelho que fosse além do evangelho que ele
lhes havia anunciado, ainda que viesse a ser pregado por anjos? Só há uma
resposta razoável: ele sabia que o evangelho por ele anunciado não era segundo
o homem; porque não o havia aprendido de homem algum, mas mediante revelação de
Jesus Cristo (Gl 1:8-12).
Jesus também
atesta a autoridade suprema das Escrituras: pelo modo como a usa, para
estabelecer qualquer controvérsia: "está escrito"8 (exemplos: Mt
4:4,6,7,10; etc.), e ao afirmar explicitamente a autoridade das mesmas, dizendo
em João 10:35 que "a Escritura não pode falhar."9
III. Usurpações da Autoridade das Escrituras
Apesar da sólida base bíblico-teológica em favor da doutrina reformada da autoridade suprema das Escrituras, hoje, como no passado, deparamo-nos com a mesma tendência geral de diminuir a autoridade das Escrituras. E isso ocorre de duas maneiras: por um lado, há a propensão em admitir fontes adicionais ou suplementares de autoridade, que tendem a usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Por outro lado, há a tendência de limitar a autoridade das Escrituras, negando-a, subjetivando-a ou reduzindo o seu escopo.
Com relação
à primeira dessas tendências, pelo menos três fontes suplementares usurpadoras
da autoridade das Escrituras podem ser identificadas: a tradição (degenerada em
tradicionalismo), a emoção (degenerada em emocionalismo) e a razão (degenerada
no racionalismo). Sempre que um desses elementos é indevidamente enfatizado, a
autoridade das Escrituras é questionada, diminuída ou mesmo suplantada.
A. A Tradição Degenerada em Tradicionalismo
Este foi um dos grandes problemas enfrentados pelo Senhor Jesus. A religião judaica havia se tornado incrivelmente tradicionalista. Havendo cessado a revelação, os judeus, já no segundo século antes de Cristo, produziram uma infinidade de tradições ou interpretações da Lei, conhecidas como Mishnah. Essas tradições foram cuidadosamente guardadas pelos escribas e fariseus por séculos, até serem registradas nos séculos IV e V A.D., passando a ser conhecidas como o Talmude,10 a interpretação judaica oficial do Antigo Testamento até o dia de hoje. Muitas dessas tradições judaicas eram, entretanto, distorções do ensino do Antigo Testamento. Mas tornaram-se tão autoritativas, que suplantaram a autoridade do Antigo Testamento. Jesus acusou severamente os escribas e fariseus da sua época, dizendo:
Em vão me
adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o
mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens. E disse-lhes ainda:
Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa própria
tradição... invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição que vós
mesmos transmitistes... (Mc 7.7-9,13).11
O Apóstolo
Paulo também denunciou essa tendência. Escrevendo aos colossenses, ele
advertiu:
Cuidado que
ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a
tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo...
Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis
no mundo, vos sujeitais a ordenanças: Não manuseies isto, não proves aquilo,
não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? (Cl
2.8,20-22).
Quinze
séculos depois, os Reformadores se depararam com o mesmo problema: as tradições
contidas nos livros apócrifos e pseudepígrafos, nos escritos dos pais da
igreja, nas decisões conciliares e nas bulas papais também degeneraram em
tradicionalismo. As tradições eclesiásticas adquiriram autoridade que não
possuíam, usurpando a autoridade bíblica. É neste contexto que se deve entender
a doutrina reformada da autoridade das Escrituras. Trata-se, primordialmente,
de uma reação à posição da Igreja Católica.
Isto não
significa, entretanto, que a tradição eclesiástica seja necessariamente ruim.
Se a tradição reflete, de fato, o ensino bíblico, ou está de acordo com ele,
não sendo considerada normativa (autoritativa) a não ser que reflita realmente
o ensino bíblico, então não é má. Os próprios Reformadores produziram,
registraram e empregaram confissões de fé e catecismos (os quais também são
tradições eclesiásticas). Para eles, contudo, esses símbolos de fé não têm
autoridade própria, só sendo normativos na medida em que refletem fielmente a
autoridade das Escrituras.
O problema,
portanto, não está na tradição, mas na sua degeneração, no tradicionalismo, que
atribui à tradição autoridade inerente. O tradicionalismo atribui autoridade às
tradições, pelo simples fato de serem antigas ou geralmente observadas, e não
por serem bíblicas. Essa tendência acaba sempre usurpando a autoridade das
Escrituras.