Há muito do velho paganismo em nós. Mesmo o mais
racionalista dos seres pode manifestar uma ponta de irracionalismo quando, por
exemplo, adia ad infinitum a visita ao dentista esperando
inconfessadamente que o problema se resolva por si.
Mas, ao contrário do racionalista que às vezes se
comporta de modo irracional, tenho uma personalidade naturalmente inclinada
para o irracionalismo. Foi o que me levou a buscar Deus nos meios esotéricos,
por exemplo, antes de me converter. Uma das manifestações mais dolorosas dessa
inclinação é a presença de medos obscuros e inconfessáveis cuja irrealidade só
é percebida com muito custo.
Cito alguns. Um pavor antigo, desde criança, era a
possibilidade de ficar louca do nada, ou de bater a cabeça no chão em algum
acidente e perder as faculdades mentais mais básicas. Derivava de uma pregação
comum no esoterismo: a mente podia transformar os pensamentos em realidade. Uma
vez convencido disso, tente dormir à noite enquanto seu cérebro fabrica os
acontecimentos mais indesejados de sua vida.
Boa parte disso foi debelada com o trabalho do
Espírito Santo em mim. Com poucos anos de conversão, pude identificar de
imediato um inacreditável twist argumentativo em uma irmã que citou Jó para
confirmar o ensinamento esotérico: “Aquilo que temo me sobrevém, e o
que receio me acontece” (Jó 3.25) – um desabafo evidentemente
descritivo. Se Deus não tivesse me transformado, sabe-se lá que tipo de síntese
mística eu teria feito com o cristianismo.
Deus continua debelando em mim os medos mais
tenazes. O processo de cura, como descobri, é exemplificado em Lamentações 3: “Quero
trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3.21). Assim como o
versículo de Jó, essa frase tem sido retirada de seu contexto para justificar
uma esperança mundana, baseada na lembrança de “tempos melhores”. Mas relembrar
o passado feliz em um contexto infeliz, além de nada garantir para o futuro, é
uma verdadeira tortura autoinfligida. E pior: às vezes não há o que lembrar.
Uma infância infeliz, uma cadeia de insucessos amorosos, o cotidiano de pobreza
que atravessa gerações... Nesses casos, como o versículo se aplicaria?
Percebe-se então que a ênfase do texto não pode estar nos fatos da vida. Mas
onde estará?
Vejamos. Jeremias relembra o passado, mas um
passado nada glorioso: “Eu sou o homem que viu a aflição pela vara do
furor de Deus” (Lm 3.1), resume ele seus infortúnios. Todo o livro é
uma grande lista de infortúnios, resultantes dos contínuos pecados do povo de
Israel. Até que o versículo 21 do capítulo 3 inaugura a mudança de foco:
"Quero trazer à memória o que me pode dar
esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos,
porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se a a cada manhã. Grande é a
tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto,
esperarei nele."
Onde Jeremias foi buscar esperança? Nenhum
acontecimento pessoal é evocado, mas sim essa característica divina: o Deus de
Israel é misericordioso. Caso haja arrependimento, Sua ira não dura para
sempre. Jeremias sabia disso a partir do registro de tudo o que havia sido
feito a seu povo até então. Hoje, também sabemos disso, primordialmente, pelo
registro bíblico de tudo o que Deus fez nas vidas de Abraão, Moisés, Josué,
Isaías, Paulo e de todos aqueles que, tendo sido alvo da grande misericórdia do
Senhor, andaram com Ele. Assim como somos “enxertados” na família da fé (Rm
11), também ocorre conosco essa apropriação da vivência de outros: todo novo
cristão, inicialmente sem referenciais para pensar e enxergar Deus, apropria-se
das maravilhas do passado e as integra a seu horizonte. Quando não há lembrança
pessoal dos feitos de Deus, a fé inaugura o processo e a Palavra entra como
experiência adquirida.
Nova convertida, eu não tinha acesso à experiência
direta com a cura divina de meus temores. Foi trazendo à memória o caráter de
Deus, com o poder do Espírito Santo, que meu coração foi orientado para a
segurança da onipotência do Pai sempre que pseudoverdades, tais como a do
pensamento mágico e do poder da mente, ameaçavam me submergir. Em um processo
longo, que durou anos (e ainda continua em alguma medida), grandes medos foram
vencidos com a lembrança – em meio a grande choro e oração – de que toda a
realidade está nas mãos dele. Diante de pecados recém-descobertos, é a partir
da experiência adquirida biblicamente que precisamos clamar: “Quero trazer à
memória o que me pode dar esperança.” Não algum ponto de nosso passado, que no
caso sequer existe, mas o foco no contínuo educar da mente para pensar toda a
realidade – inclusive a realidade mais apavorante dos medos obscuros – segundo
os conteúdos expressos em Sua Palavra: o que pode – é capaz – de nos dar
esperança é o maravilhoso caráter de nosso Deus, atestado nos relatos de nossa
fé e posteriormente, se o provamos (Sl 34.8), na nossa vida.
Racionalista ou irracionalista, sejam quais forem
os males que o assediam, você deve se apropriar conscientemente dessa Palavra
que agora, por causa do nosso enxerto na família de Deus, pertence-nos por
completo, como parte da própria seiva que nos alimenta como galhos enxertados.
Se não o fizer, sua esperança será puro saudosismo, sem apoio consistente
algum.
Oro para que você faça isso, aplicando-a contra
todos os seus pecados e em todas as suas aflições.
Fonte: Blog da autora