Justo e Justificador
A morte de Cristo foi necessária porque somente
assim os seres humanos poderiam ser perdoados, sem que Deus deixasse de ser
justo. Jesus morreu para conciliar a justiça e o amor de Deus.
Talvez a melhor explicação bíblica a respeito deste
tema se encontre no capítulo 3 de Romanos. Há algo que Paulo deseja provar:
Deus somente pode salvar o homem pecador por meio de Cristo Jesus,
independentemente de obras da lei, e isso não desfaz a sua justiça. Nesse
capítulo, Paulo faz questão de enfatizar a realidade do pecado de todos os
homens: “Já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão
debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem
entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram
inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). Ele está
citando o Salmo 14, que demonstra que todos os homens, sem exceção, são
pecadores.
A questão é: os pecadores devem ser julgados e,
como consequência, receberão a ira de Deus sobre si. Deus precisa fazer isso,
caso contrário estará deixando de ser justo. Especialmente os judeus, poderiam
argumentar: E os que estão tentando obedecer à lei? As pessoas pensam que, se
buscarem obedecer a Deus, ao final serão salvas pela misericórdia de Deus, como
se a boa intenção fosse suficiente. Paulo diz: Esse caminho é errado. A lei não
foi feita para salvar, mas para apontar o pecado: “Ora, sabemos que tudo o que
a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o
mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante
dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do
pecado” (Rm 3.19,20).
Que opção resta então? De acordo com Paulo, a opção
da morte de Cristo. Ele diz: “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de
Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm 3.21). A expressão “justiça”
que Paulo usa, poderia sugerir que Deus iria punir os homens, mas Paulo está
falando de um outro aspecto da justiça de Deus. É a “justiça de Deus mediante a
fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não
há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.22,23;
ênfase acrescentada). Ele não está falando de uma justiça punitiva, mas de uma
justiça que absolve, que inocenta.
A justiça, porém, só pode inocentar alguém que seja
realmente inocente, e não é esse o caso do ser humano. O argumento de Paulo é
que a justiça de Deus em Cristo, somente é possível “mediante a redenção que há
em Cristo Jesus” (Rm 3.24). A palavra-chave aqui é redenção.
Paulo explica como funciona esta redenção: “A quem
Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a
sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em
Jesus” (Rm 3.25,26). Esses dois versículos são o centro da argumentação de
Paulo. O próprio Deus propôs a morte do seu filho, como uma forma de
propiciação. A ideia de propiciação sugestiona algo que apazigua a ira de Deus.
O pecado humano como quebra da lei despertou a ira
de Deus, e o sacrifício de Jesus apazigua essa ira. A questão da ira de Deus
não é bem vista no meio dos estudiosos de inclinação liberal, pois eles vêm
Deus apenas como amor. Baillie é dessa opinião: “Sua ira não deve ser vista
como alguma coisa que precisa ser propiciada e assim transformada em amor e
misericórdia, mas deve ser identificada com o fogo consumidor do amor inexorável
de Deus em relação com os nossos pecados”.16 Certamente ele tem
bastante dificuldade em compreender que Deus possa ficar irado contra os
pecadores que ele mesmo criou.17
Porém, é um fato bem visível na Bíblia que a ira de
Deus se dirige contra o homem pecador (ver Jo 3.36; Rm 1.18; 3.5; 9.22; Ef 5.6;
Ap 14.10). O sacrifício expiatório de Cristo faz propiciação pelos pecados dos
seres humanos que crêem, porque satisfaz o requerimento da lei de Deus de que o
pecado fosse julgado e condenado, e assim, ele satisfaz a ira de Deus.
Na cruz, o pecado do homem é julgado e condenado na
pessoa de Jesus. Isso cumpre o requerimento da lei de Deus e, segundo Paulo,
explica também por que de Deus tolerou os pecados “anteriormente cometidos”.
Ele está se referindo aqui aos pecados cometidos na Antiga Dispensação, ou
seja, no Antigo Testamento. Precisamos lembrar que os pecadores do Antigo
Testamento ofereciam sacrifícios pelos seus pecados. Estamos falando aqui do
povo de Israel.
Esses sacrifícios não tinham poder, em si mesmos,
de perdoar pecados (Hb 10.1). O fato é que eles apontavam para Cristo e, na
morte de Cristo, encontravam sua razão de ser e sua eficácia. Por esse motivo,
na explicação de Paulo, os pecadores do Antigo Testamento que os praticavam não
foram punidos, e Deus não deixou de ser justo por causa disso.
Desde o início, Deus tinha “em vista a manifestação
de sua justiça no tempo presente” (3.26). O tempo presente representa o momento
do sacrifício de Jesus. Grudem argumenta: “Como Jesus carregava sozinho a culpa
pelos nossos pecados, Deus Pai, o poderoso criador, o Senhor do Universo,
derramou sobre ele a fúria de sua ira: Jesus se tornou objeto do intenso ódio e
da vingança contra o pecado que Deus tinha guardado com paciência desde o
início do mundo”.18 Cristo recebeu sobre si toda a ira
acumulada de Deus.
Devemos pensar realmente que:
A cruz foi o cálice do castigo
eterno, destilada da ira que estava sendo armazenada desde o pecado de Adão,
concentrada numa poção terrível. O Filho bebeu o cálice da ira para que
pudéssemos beber o cálice da salvação. E quando ele terminou seu cálice, não
sobrou nenhuma só gota para nós que, de forma grata, recebemos o benefício da
sua morte.19
Paulo continua: “Para ele mesmo ser justo e
justificador daquele que tem fé em Jesus”. Com a morte de Jesus, Deus continua
sendo justo ao mesmo tempo em que justifica o pecador, a cruz não é algo que
influencia o amor de Deus; antes, foi o amor de Deus que a produziu.20 Sem
a morte de Jesus, se Deus justificasse o pecador estaria sendo injusto, e se o
condenasse, estaria sacrificando o seu amor. A única maneira de estas duas
virtudes divinas, o amor e a justiça, permanecerem intocáveis é por meio da
morte de Jesus. Por essa razão, a morte de Jesus foi absolutamente necessária,
pois ela é condizente com o caráter de Deus. Como diz Stott:
O modo pelo qual Deus escolhe perdoar
os pecadores e reconciliá-los consigo mesmo deve, acima de tudo, ser totalmente
coerente com o seu próprio caráter. Não é somente que ele deve subverter e
desarmar o diabo a fim de resgatar os seus cativos. Nem é somente que ele deve
satisfazer à sua lei, sua honra, sua justiça ou a ordem moral: é que deve
satisfazer a si mesmo.21
Ao morrer na cruz, Jesus estava satisfazendo o
caráter santo e justo de Deus, ao mesmo tempo em que estava dando vazão ao seu
amor eterno. Nada demonstra de modo tão espetacular, e simultaneamente, estes
dois atributos de Deus. A cruz demonstra de modo impressionante a justiça e o
amor de Deus.
Conclusão
Apesar da descrença de muitos, Deus continua
salvando os homens pela loucura da pregação do Cristo crucificado. A
dificuldade das pessoas com a doutrina da morte de Cristo é devida a uma
incompreensão do próprio caráter de Deus. Como diz Lloyd-Jones:
A dificuldade real que as pessoas têm
com esta doutrina é geralmente devida ao fato de que todo o seu conceito de
Deus é inadequado. Ignoram alguns aspectos do Seu caráter. Enfatizam só um
lado, com a exclusão dos outros. Se elas tomassem a Deus tal como ele é e
compreendessem a verdade acerca dele, suas dificuldades se desvaneceriam.22
Concluímos, portanto, que não havia outro modo de o
homem ser salvo sem que Cristo morresse. A morte do mediador é a grande
demonstração do poder, da soberania, da justiça e do amor de Deus.
Acima de tudo, cabe alegria e louvor a Deus por ter
estabelecido o plano da salvação por meio do sacrifício de Jesus. Não devemos
questionar o método de Deus, pois ele, na sua sabedoria, é o único que tem
condições de estabelecer o que é certo.