O presente artigo analisa a importância do discurso verbal no protestantismo em geral e na tradição reformada ou calvinista em particular. Mais especificamente, trata de alguns aspectos relacionados com a pregação dos primeiros pastores e missionários presbiterianos que atuaram no Brasil. O artigo inicia com algumas considerações acerca do tema na história do movimento reformado, tanto europeu quanto norte-americano, com ênfase especial ao puritanismo. Em seguida, são abordados vários aspectos referentes à formação recebida pelos primeiros missionários presbiterianos que trabalharam no Brasil e a influência que exerceram sobre as primeiras gerações de ministros nacionais. O enfoque principal do estudo recai sobre a prática da publicação de sermões nos primeiros tempos da obra presbiteriana no Brasil, como um meio de suprir de material homilético de boa qualidade as igrejas isoladas e carentes de obreiros do interior. O artigo se detém de modo especial no levantamento de um antigo periódico evangélico brasileiro voltado especificamente para a publicação de sermões, o Púlpito Evangélico (1888-1900), produzido pelos missionários da Igreja do Sul dos Estados Unidos, a PCUS. Sem entrar na análise homilética e teológica dos sermões propriamente ditos, a pesquisa destaca as principais características do valioso periódico e faz uma classificação temática de quase 150 sermões publicados pelo mesmo.
INTRODUÇÃO
Desde o século 16, a ênfase à palavra falada e escrita tem sido um dos elementos mais distintivos da mentalidade protestante. Em contraste com o catolicismo, com a sua grande complexidade simbólica e ritualística, a espiritualidade protestante clássica é despojada, comedida, austera. Carentes de outras formas de expressão, os protestantes acabaram dando uma ênfase maciça à comunicação verbal através de seus escritos, de seus hinos e de suas pregações. A antipatia da mentalidade protestante pelo ritual pode ser vista até mesmo na área sacramental. Além de aceitarem apenas dois sacramentos, os herdeiros da Reforma dão ênfase não aos elementos materiais em si (pão, vinho, água), mas ao seu significado espiritual, e o fazem por meio de muitas explicações, de um discurso elaborado.
Mais especificamente, os protestantes valorizam a “Palavra”, isto é, a Escritura Sagrada. Outra vez em contraste com a Igreja Católica, que baseia as suas convicções no tripé composto por Escritura, Tradição e Magistério, o protestantismo se concentra de modo especial na Bíblia, embora não deixe de ter as suas próprias formas de tradição e magistério eclesiástico. A Escritura se torna, no universo protestante, o ponto focal da teologia, do culto e da vida espiritual. Todos os aspectos da vida cristã, quer individual, quer comunitária, são analisados e entendidos com referência à Palavra de Deus.
A centralidade da “Palavra” e da “palavra” se evidenciou em muitas áreas, mas especialmente no culto, a manifestação mais visível e concreta da vida da igreja. Em virtude da sua importância capital, a Escritura precisava ser estudada, interpretada e ensinada. Daí a tremenda ênfase dada ao púlpito e à pregação na vida das igrejas da Reforma.[1] Os pastores passaram a ser designados especificamente como os “ministros da Palavra” (minister verbum Dei ou minister verbi divini). Suas funções mais importantes eram pregar a Palavra e ministrar os sacramentos. Na tradição reformada ou calvinista, a “fiel exposição da Palavra” passou a ser a primeira e a mais importante das marcas da igreja. Essas ênfases foram levadas pelos missionários aos países em que trabalharam.
O objetivo deste artigo é fazer uma análise introdutória da pregação dos primeiros obreiros presbiterianos do Brasil, tanto estrangeiros quanto nacionais. Inicialmente são feitas algumas considerações sobre a pregação na tradição reformada, na Europa e nos Estados Unidos. Em seguida, são abordadas a formação teológica e as práticas de pregação dos pioneiros presbiterianos no Brasil. Finalmente, é feito um levantamento geral do primeiro periódico presbiteriano brasileiro voltado para a publicação de sermões, O Púlpito Evangélico (1888-1900), destacando-se as suas principais características e o seu conteúdo.
1. A pregação na tradição reformada
A Escritura e a pregação foram fundamentais para todas as igrejas da Reforma, mas se tornaram especialmente importantes no protestantismo suíço. Ulrico Zuínglio adquiriu notoriedade em Zurique exatamente em virtude de sua vibrante pregação bíblica, estimulada pela leitura do Novo Testamento em grego e latim publicado por Erasmo de Roterdã. João Calvino distinguiu-se por sua impressionante erudição bíblica e por seu valioso trabalho como intérprete, pregador e expositor das Escrituras. Seus herdeiros mantiveram essa ênfase, insistindo na necessidade de um ministério bem preparado. Os pastores reformados, nos diferentes países em que esse movimento se implantou, recebiam sólido treinamento bíblico e teológico a fim de serem preparados para a sua tarefa mais essencial. A Academia de Genebra, fundada por Calvino em 1559, da qual Teodoro Beza foi o primeiro reitor, tinha como principal finalidade o preparo de pastores para as igrejas reformadas da França, dando ênfase, entre outras coisas, ao desenvolvimento de habilidades nas áreas exegética e homilética. Com o tempo, surgiram universidades reformadas que se tornaram padrão de excelência nesses campos. São exemplos disso as Universidades de Leyden (Holanda), Heidelberg (Alemanha) e Edimburgo (Escócia).
A pregação reformada atingiu um dos seus pontos culminantes com o advento do puritanismo britânico. O século que se seguiu ao início do reinado de Elizabete (1558) foi uma das grandes eras do púlpito em todos os tempos. Thomas Fuller observou que o segredo da enorme influência do puritanismo na vida da Inglaterra foi a notável habilidade revelada pelos pregadores puritanos no púlpito.[2] Praticamente todos os grandes teólogos puritanos foram também pregadores destacados. Dentre eles podem ser citados os ingleses Thomas Cartwright, Richard Hooker, William Perkins, Richard Sibbes, Thomas Goodwin, Richard Baxter, John Owen e John Bunyan, e os escoceses John Knox, Andrew Melville, Samuel Rutherford, William Guthrie, Alexander Peden, James Renwick e Thomas Boston.[3] Esses pregadores criaram o chamado estilo “simples” de pregação, que visava atingir tanto a mente quanto o coração dos ouvintes. Esse estilo era simples no sentido de ser inteligível, tocante e direto, sendo ao mesmo tempo cheio de vivacidade através do uso habilidoso de imagens extraídas da Bíblia e da vida diária.[4]
Essa ênfase em um ministério bem treinado e na importância da pregação foi levada pelos reformados para a América do Norte. Desde o início da colonização, os calvinistas criaram colégios (“colleges”), que visavam prioritariamente a preparação dos seus ministros. Os primeiros foram os de Harvard, em Massachusetts (1636); Yale, em Connecticut (1701); Princeton, em Nova Jersey (1746); Queens/Rutgers, em Nova Jersey (1764); e Dartmouth, em New Hampshire (1769). Os grandes pregadores americanos dos séculos 17 e 18 foram todos influenciados pela tradição puritana: Roger Williams, Francis Makemie, Cotton Mather, William Tennant, Theodore Frelinghuysen, Jonathan Edwards, Samuel Davies e John Witherspoon, entre outros.[5] Sendo o puritanismo a mais influente tradição religiosa da América do Norte, pode-se imaginar quão grande foi o impacto da sua pregação na formação espiritual e cultural dos Estados Unidos.
Em muitos aspectos, Jonathan Edwards (1703-1758) tipifica os grandes pregadores da época, a começar do aspecto físico. Nos quadros que o representam, ele invariavelmente enverga o traje característico de pregador: toga preta, colarinho e peruca branca. Acima de tudo, Edwards foi o grande representante americano do estilo “simples” de pregação. Seus sermões, cuidadosamente preparados e memorizados, preocupavam-se em expor as grandes verdades bíblicas e aplicá-las ao coração e à vida dos fiéis. Não deixa de ser notável o fato de que o primeiro avivamento ocorrido durante o seu ministério na Igreja Congregacional de Northampton verificou-se quando ele pregava uma série de sermões sobre a justificação pela fé (1734).
Em distinção dos puritanos e de outros grupos reformados, os presbiterianos norte-americanos acabaram criando a sua própria tradição. Em 1788, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos estava plenamente formada, com a criação da sua Assembléia Geral. Nas décadas seguintes, ocorreu uma série de acontecimentos marcantes. Em primeiro lugar, o fenômeno dos avivamentos, particularmente o chamado Segundo Grande Despertamento, contribuiu para o extraordinário crescimento da igreja. O historiador Sydney Ahlstrom informa que no início do século 19 havia aproximadamente 13.500 membros comungantes em cerca de 500 igrejas; em 1820, 70.000 membros em 1.300 igrejas, e em 1837 (o ano da criação da Junta de Missões Estrangeiras), 226.000 membros em 2.865 igrejas.[6]
Em segundo lugar, houve uma polarização na igreja entre dois grupos: a “Velha Escola” e a “Nova Escola”. Esta, concentrada principalmente em Nova York e na Nova Inglaterra, era partidária do avivamento e de um calvinismo atenuado, ao passo que a primeira, predominante em Nova Jersey, na Pensilvânia e no sul, via o avivamento com suspeitas, por causa de seus excessos e de suas ênfases teológicas, e era forte defensora da ortodoxia de Westminster. Essas preocupações levaram a Velha Escola a criar, em 1812, o Seminário de Princeton, cujo primeiro professor foi Archibald Alexander (1772-1851). Esse escocês-irlandês, ao buscar uma orientação intelectual e teológica para a nova instituição, voltou-se, não para a tradição derivada de Jonathan Edwards, mas para o escolasticismo de François Turretin (1623-1687), vigoroso defensor do calvinismo clássico em Genebra. Ahlstrom observa que, até ser substituída em 1873 pela Teologia Sistemática de Charles Hodge, a Institutio Theologiae Elencticae[7] de Turretin, associada às confissões suíças e aos padrões de Westminster, “proporcionou tanto estrutura quanto conteúdo para a mensagem que centenas de formandos do seminário levaram a todo o país e a muitos campos missionários no exterior”.[8]
Os outros grandes seminários do norte, como Western (Pensilvânia), McCormick (Illinois) e Lane (Ohio) tinham essencialmente a mesma orientação. O mesmo se pode dizer dos principais seminários presbiterianos do sul, Union (Virgínia) e Columbia (Carolina do Sul), que igualmente abraçaram a ortodoxia calvinista. Seus principais professores foram, respectivamente, os conhecidos teólogos conservadores Robert Lewis Dabney (1820-1898)
* O autor é mestre em Novo Testamento (S.T.M., Andover Newton Theological School, Newton Centre, EUA) e doutor em História da Igreja (Th.D., Boston University School of Thelogy). É professor de história da igreja no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo, e historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.