A Oração e o Retrato do Caráter
Ricardo Barbosa de Sousa Tenho visto, com muita freqüência, crentes orando por
vagas em estacionamento, de preferência uma bem em frente à loja que precisam
ir, ou clamando fervorosamente para que não chova no dia do casamento ou
aniversário planejado para acontecer num espaço aberto. Ouço pais pedindo
oração para que Deus dê uma força para que o filho que nunca foi de estudar
muito passe no vestibular ou num concurso público; ouço também crentes
expressando sua gratidão a Deus por terem conseguido furar uma fila, ou vender
um carro batido sem que o comprador percebesse. Orações assim são comuns em
nossas igrejas. Contudo, quando reconhecemos que a oração é um meio de
relacionamento, ela nos oferece um duplo retrato: de Deus e de quem ora. A
oração tem um papel importante no relacionamento entre o homem e Deus, pintando
tanto o caráter humano como o divino. O que falamos para Deus (súplica,
gratidão, louvor, desejos e situações da vida) revelam nossas motivações, nossa
moral e nosso caráter. Da mesma forma, algumas afirmações que fazemos sobre
Deus na oração (amoroso, justo, misericordioso, soberano) revelam convicções
sobre a natureza divina. Nem sempre nossa compreensão sobre quem é Deus revela
a verdadeira natureza divina. Por exemplo, Deus se revela como um Deus justo e
reto e nós o experimentamos como um Deus caprichoso e vingativo; Deus se revela
como um Deus sempre presente mesmo em meio ao sofrimento, e nós o
experimentamos como um Deus ausente ou distante. O retrato que fazemos de Deus
certamente não é mais importante do que o retrato que Deus faz de si mesmo. A
percepção humana de Deus precisa sempre ser corrigida e transformada pela
auto-revelação de Deus nas Escrituras. E nossas orações quase sempre revelam
também a natureza de nosso caráter. Por isso a oração é não apenas um meio de
relacionamento, mas também um caminho de transformação. Elias foi reconhecido
como um homem de Deus e Ezequias, como um rei fiel. O caráter de ambos foi
afirmado pela oração e pela confiança em Deus em momentos de crise. Em cada
caso, suas orações foram apresentadas de acordo com a situação vivida, e deram
uma definição do caráter deles. Eles oravam da forma como agiam, seus atos não
contradiziam suas palavras. Da mesma forma, as orações de Paulo que encontramos
em suas cartas, também revelam seu caráter e sua teologia. Basta um olhar
atencioso para vermos em Paulo um coração pastoral, comunitário, resignado e
entregue a Deus e ao seu povo, bem como um Deus que é o Soberano Senhor, que se
revela a nós por meio do seu Filho e que voltará em glória e majestade. A
oração pinta um retrato de Deus e de quem ora. Se prestarmos atenção na forma e
conteúdo da oração, seja aquela que fazemos na igreja, publicamente ou em
grupo, ou a que fazemos sozinhos no quarto, teremos um retrato muito fiel e
real da igreja, nosso e daquilo que pensamos sobre Deus e sobre seu propósito
para a igreja e o mundo. Provavelmente os pais que oram para que Deus dê uma mãozinha
para que o filho preguiçoso passe no vestibular negam em suas orações o caráter
justo de Deus, e se revelam também como pessoas que pouco se importam com a
justiça. Tornam-se capazes de atribuir a Deus a “bênção” de um negócio ilícito.
E orações suplicando a Deus para que não chova apenas para não estragar a festa
ou o penteado, as férias na praia ou o churrasco no sábado, revelam o caráter
egoísta de quem ora e a concepção de um Deus que não passa de um mágico
cósmico. Se queremos saber quem somos, o que pensamos sobre Deus, quais são
nossas motivações primárias e a raiz do nosso caráter, basta um olhar honesto
para a nossa vida de oração, que revela tanto a teologia como a antropologia.
Porém, a oração não apenas revela as distorções antropológicas e teológicas,
mas também é a forma e o caminho para corrigir essas distorções. Pior do que
orar errado é não orar. Enquanto permanecemos orando, temos a chance de ver
nossa compreensão de Deus e de nós mesmos sendo transformadas. Ricardo Barbosa
de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro
Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do
Coração. Fonte: Revista Ultimato, Edição 304, Janeiro-Fevereiro 2007.