terça-feira, 31 de março de 2015

A Vontade de Deus é Irresistível? por Por John Frame




Outra objeção dos teólogos do teísmo aberto à doutrina da preordenação exaustiva divina é que Deus, na Bíblia, nem sempre consegue tudo o que quer. Às vezes, as criaturas "frustram" a vontade de Deus. Portanto, Deus precisa se arriscar.
Nicole mostra que, para os defensores do teísmo aberto, esses riscos são realmente grandes. Para eles, a frustração de Deus não é ocasional, mas freqüente. Ele assumiu um risco muito grande ao criar anjos livres e, junto com muitos anjos caídos, Satanás desertou, criando o "enorme problema do mal". Deus esperava que Adão e Eva permanecessem justos, mas eles não o fizeram. Num determinado momento, o mal se tornou tão desenfreado aponto de Deus se arrepender de ter feito a humanidade, tendo, então, provocado uma "quase completa aniquilação da humanidade". Deus se arriscou, salvando Noé e sua família, mas isso também não deu certo. Essas apostas se mostraram tão ruins que somente a morte do seu próprio Filho poderia salvar a situação. Porém, mesmo isso se tornou insuficiente, visto que muitas pessoas se recusam a crer e têm sofrido conseqüências devastadoras.
Sanders admite que, num nível bastante amplo, a vontade de Deus sempre é realizada. Em resposta a passagens como Salmo 135.6 e Daniel 4.35, ele diz:
Em termos de limites, estruturas e objetivos do projeto soberanamente estabelecido por Deus, não há dúvida alguma de que Deus consegue o que ele quer. Deus pode criar o mundo, prover para ele e conceder-lhe seu amor, sem que ninguém ou alguma coisa possa frustrar os seus desejos principais. Se Deus decide criar um mundo com pessoas que possam corresponder ao amor divino, e se Deus estabelece uma relação recíproca genuína com eles, então é próprio dizer que nada pode frustrar as intenções de Deus.
Em níveis mais específicos, porém, Sanders acredita que a vontade de Deus pode ser frustrada:

Se Deus não força as criaturas a corresponder ao seu amor, é introduzida a possibilidade de que pelo menos algumas delas deixarão de entrar no amor divino e, portanto, alguns dos desejos específicos de Deus podem ser frustrados. Se Deus quer um mundo em que exista a possibilidade de não conseguir tudo o que deseja, aí, em um sentido último, a vontade divina não é frustrada. É importante saber que, se em certos casos Deus não obtém o que deseja, é, no final das contas, por causa da decisão que Deus tomou de criar um tipo de mundo no qual ele não obtém tudo o que quer.
Sanders está em solo tradicional no que diz respeito a distinguir níveis diferentes de vontades, desejos e quereres divinos. Até mesmo os teólogos calvinistas admitem haver algumas situações que Deus verdadeiramente valoriza (e, portanto, quer ou deseja), mas que não faz com que aconteçam. Por exemplo, é claro que Deus deseja, em algum sentido, que todos os seres humanos o adorem, que todos obedeçam a seus pais, que não cometam assassinatos, nem adultério, etc. Porém, esse desejo divino não é satisfeito.
Podemos entender esses níveis de desejos por nossa própria experiência. Temos muitos tipos diferentes de desejos e prazeres, e os organizamos de acordo com as nossas prioridades. Desejamos algumas coisas mais que outras. Algumas não podemos alcançar e, assim sendo, nos concentramos em outras. Adiamos a realização de alguns desejos até que outros se concretizem. Por vezes, alguns devem ser realizados antes de outros. Alguns não são compatíveis com outros, o que nos obriga a escolher entre eles. Por essas razões, alguns dos nossos desejos não são executados, seja temporária ou permanentemente.
Muitas vezes, a nossa priorização de desejos é devida às nossas fraquezas, mas, às vezes, não. Alguém pode desejar uma casquinha de sorvete e ter acesso fácil a ela, mas, voluntariamente, pode adiar a realização desse desejo até que parte de um trabalho seja concluída. Ele pode valorizar mais o término do trabalho do que o saborear de uma casquinha de sorvete, ou talvez não. Pode ser que ele valorize mais a casquinha de sorvete, mas crê que pode ter mais prazer nela depois de terminada a tarefa. Assim, o nosso método para tomar decisões é, freqüentemente, complicado. Os inter-relacionamentos entre nossos muitos desejos e entre as várias maneiras para alcançá-los são complexos.
Vemos aqui algo análogo às complexidades da vontade de Deus. Deus também tem muitos desejos, valorizados e priorizados de diversas maneiras. Alguns ele realiza imediatamente. Porém, já que criou um mundo no tempo e deu a este mundo uma história e um objetivo, alguns dos seus desejos, em virtude do seu próprio plano eterno, devem aguardar a passagem do tempo. Além disso, há algumas coisas boas que, em decorrência da natureza do plano de Deus, nunca se realizarão. O plano de Deus é internamente consistente, respeitando a integridade das criaturas. Se Deus ordenou que Joe tivesse exatamente três filhos, isso exclui a possibilidade de ele vir a ter cinco, mesmo que duas crianças a mais poderiam ser (no abstrato) uma ótima coisa. E as amplas intenções de Deus para a História evidentemente excluem a bênção de um mundo em que não exista um histórico de maldade.
Assim sendo, os teólogos fizeram várias distinções dentro do conceito mais amplo da vontade de Deus. A vontade de Deus é, certamente, uma só. Mas também é complexa. Portanto, alguns têm distinguido aspectos diferentes dela como "vontades", no plural. Precisamos ser cuidadosos com essa linguagem, mas ela torna as coisas mais fáceis para nós para que consideremos as complicações do nosso tópico.
Vontades antecedente e conseqüente
Alguns teólogos fazem distinção entre as vontades antecedente e conseqüente de Deus. Podemos chamar de sua vontade antecedente a avaliação geral de Deus de que algumas coisas são boas. As suas escolhas específicas entre essas coisas boas (tendo em vista a natureza geral do mundo que ele planeja fazer) podem ser chamadas de sua vontade conseqüente. Os teólogos católico-romanos, os luteranos e os arminianos têm usado a distinção antecedente-conseqüente para criar espaço para a liberdade indeterminista. Segundo o ponto de vista deles, a vontade antecedente de Deus inclui a salvação de todos os homens. Sua vontade conseqüente, no entanto, espera as decisões (indeterministas) livres dos seres humanos. Deus abençoa aqueles que escolhem crer; os que não crêem, ele condena à punição eterna. Essas bênçãos e maldições vêm de sua vontade conseqüente, a qual é reação às escolhas humanas.
No meu ponto de vista, esses teólogos estão certos ao dizer que Deus quer antecedentemente que todos sejam salvos. A salvação universal é certamente uma situação desejável. Eles também estão certos em afirmar que, tendo em vista a situação histórica atual, Deus não concretiza esse resultado. Não há mal algum em chamar essa segunda vontade de "conseqüente". Em seu plano eterno, Deus determinou não alcançar certas coisas boas. Contudo, eu rejeito a teoria da liberdade indeterminista que é freqüentemente associada a essa distinção. Como já vimos, a escolha de Deus vem em primeiro lugar. As escolhas humanas são efeitos e reações à escolha divina.
Vontades decretatória e normativa
Os teólogos reformados muitas vezes têm rejeitado a distinção antecedente-conseqüente por causa da sua associação com a liberdade indeterminista. Porém, eles têm adotado uma distinção um tanto semelhante entre as vontades decretatória e normativa de Deus. A vontade decretatória de Deus (ou simplesmente o seu "decreto") é sinônimo de preordenação, a qual discutimos no capítulo 5. É seu propósito eterno, pelo qual ele preordena tudo o que acontece. A vontade normativa de Deus é sua avaliação das coisas, particularmente revelada a nós na sua Palavra (seus "preceitos"). Nada pode se opor eficazmente à vontade decretatória de Deus. O que Deus decretou certamente acontecerá. No entanto, é possível para as criaturas desobedecer à vontade normativa de Deus - e elas muitas vezes o fazem.
Essa distinção é um tanto semelhante à distinção antecedente-conseqüente, embora as duas distinções tendam a aparecer em tradições teológicas diferentes. A vontade normativa de Deus, assim como a sua vontade antecedente, consiste na sua avaliação de toda situação possível e real das coisas. Sua vontade decretatória, como a sua vontade conseqüente, determina o que realmente vai acontecer. A diferença entre decretatória e conseqüente é que o conceito da vontade decretatória exclui o indeterminismo. As decisões de Deus sobre o que realmente acontecerá não se baseiam no seu pré-conhecimento das livres escolhas indeterministas do ser humano.
No entanto, mesmo do ponto de vista reformado, as escolhas soberanas de Deus levam em conta a natureza do mundo que ele escolheu criar. Como com os filhos de Joe, Deus não fará com que um acontecimento ocorra de modo inconsistente com outro acontecimento que ordenou. Assim, Deus respeita a integridade de cada acontecimento, cada pessoa e cada coisa no seu plano eterno. Portanto, cada parte do seu plano exclui dela outras situações possíveis, mesmo que algumas delas sejam boas em si mesmas. Desse modo, Deus avalia genuinamente muitos acontecimentos não compatíveis com a história específica que ele escolheu contar na História. Em certo sentido, portanto, o plano de Deus é limitado pela natureza das criaturas incluídas no plano. Porém, isso é o mesmo que dizer que o plano de Deus é limitado por sua própria consistência e integridade.
Embora eu vá argumentar, mais adiante, que os pensamentos de Deus são, em última instância, eternos, em vez de ocorrerem numa continuidade temporal, é de grande ajuda descrever o pensamento de Deus como se ocorresse em dois estágios. Primeiro, Deus avalia cada situação possível (antecedente, normativa). Em segundo lugar, ele escolhe entre essas avaliações (decretatória, conseqüente), rejeitando algumas e aceitando outras por causa de seu plano histórico.
As Escrituras autorizam essa distinção? Aqui estão algumas passagens que usam as palavras pensamento, intento, agrado, desígnio, propósito, conselho e vontade para se referir à vontade decretatória de Deus:

Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. (Gn 50.20)Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. (Mt 11.25,26)
Sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos. (At 2.23)
Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz. Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? (Rm 9.18,19)
Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. (Ef 1.11)
(Compare com SI. 51.18; 115.3; Is 46.10; Jr 49.20; 50.45; Dn 4.17; Tg 1.18; Ap 4.11.) Eu diria ainda que os "caminhos" de Deus, em Romanos 11.33, também deveriam ser tomados no sentido decretatorio, mesmo que em outras partes o termo seja quase sempre normativo.
Temos aqui algumas passagens em que esses termos são usados no sentido normativo:

Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. (Mt 7.21)
Por esta razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor. (Ef 5.17; cf. 6.6)
(Compare com SI 5.4; 103.21; Mt 12.50; Jo 4.34; 7.17; Rm 12.2; lTs 4.3; 5.18; Hb 13.21;lPe 4.2.) Essas passagens se referem literalmente aos preceitos de Deus.
As passagens que se seguem referem-se, não aos preceitos em si, mas a acontecimentos desejáveis que Deus não ordena acontecimentos que incluo na categoria geral da vontade normativa de Deus:

Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? - diz o SENHOR Deus; não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva? (Ez 18.23)
Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. (2Pe 3.9)
Há ainda outras passagens em que Deus expressa um desejo pelo arrependimento de seres humanos, que pode vir a acontecer ou não (Is 30.18; 65.2; Lm3.31-36;Ez33.11;Os 11.7,8).
A distinção de Sanders
A perspectiva de Sanders é semelhante à distinção tradicional entre antecedente e conseqüente, na qual a vontade de Deus é limitada pela livre escolha humana. Mas Sanders vai além disso. Lembremo-nos, Sanders nega que as condições climáticas venham de Deus. Portanto, para Sanders, é evidente que não é somente a liberdade humana indeterminista que limita o controle de Deus sobre o mundo. Ele ainda acredita que o mundo natural, por si mesmo, tem certa autonomia, fazendo com que acontecimentos na natureza, assim como as escolhas humanas, possam pegar Deus de surpresa.
Sanders está correto ao dizer que, num certo sentido, a vontade de Deus não pode ser frustrada, mas, em outro sentido, pode. Também concordo com ele que a frustração da vontade de Deus aparece em casos mais ou menos específicos, e não no grande delineamento dos seus planos. Ainda concordo com ele que Deus permite que a sua vontade seja frustrada por causa da natu¬reza das criaturas que criou, e também por causa da integridade delas e da integridade do seu plano.
Integridade, porém, é uma coisa e autonomia é outra. Se Deus, provoca todos os acontecimentos, não há espaço para autonomia, quer seja na natureza quer nos seres humanos. Deus planejou e preordenou tudo o que acontece, portanto nada o toma de surpresa.
Demonstrarei em outro artigo por que acredito que a liberdade indeterminista não é bíblica. Com respeito à autonomia do mundo natural, as Escrituras nunca falam sobre essa autonomia. A visão de mundo dos escritores bíblicos é profundamente personalista. Para eles, os acontecimentos da natureza são obra de Deus.
Sanders e outros defensores do teísmo aberto acreditam, evidentemente, que, já que a vontade de Deus é algumas vezes frustrada, de acordo com as Escrituras, o mundo natural deve ser até certo ponto autônomo e os seres humanos devem ser livres num sentido indeterminista. Porém, essa conclusão não procede. Há uma explicação perfeitamente adequada para o fato de a vontade de Deus nem sempre se cumprir, e ela não tem nada a ver com teorias de autonomia ou indeterminismo. A explicação é simplesmente esta: a vontade de Deus é algumas vezes frustrada porque ele decidiu assim, pois deu a alguns de seus desejos prioridade sobre outros.
A eficácia da vontade de Deus
Entretanto, a pergunta realmente crucial em relação ao teísmo aberto não é se o desejo de Deus se cumpre sempre, em todo sentido do desejo divino. Antes, a pergunta é se Deus pode falhar em alguma coisa que ele pretendia fazer. Em outras palavras, as criaturas podem frustrar a vontade decretatória de Deus? Quanto a isso, a Escritura é totalmente clara e unânime. Em termos simples, o poder de Deus sempre executa os seus propósitos. Deus não pretende fazer acontecer tudo o que ele valoriza, mas nunca falha no que pretende fazer. É verdade que as criaturas podem se opor a ele, mas elas não prevalecerão.
Devemos lembrar que Deus decreta não somente o fim da História, mas também os acontecimentos em cada momento da História. Pelos seus próprios motivos, ele escolheu retardar o cumprimento de suas intenções para o fim do mundo e decidiu cumprir essas intenções mediante uma seqüência de acontecimentos históricos complicados. Nessa seqüência, os seus propósitos aparentam, por vezes, sofrer derrota e, em outras vezes, atingir os seus objetivos. Contudo, cada derrota aparente, na verdade, torna a sua vitória final mais gloriosa. A cruz de Jesus é claramente o exemplo maior desse princípio. Portanto, Deus planeja não somente o seu triunfo final, como também a sua aparente derrota na História. Ele planejou que a História fosse exatamente como ela é. Sendo assim, todos os seus decretos, tanto na História como na consumação da História, hão de ocorrer.
Assim sendo, repetidamente a Escritura afirma que os propósitos de Deus prevalecerão. E eles prevalecem não somente no final da História e também não somente no seu esquema mais extenso, como também prevalecem ao longo da História em todas as situações específicas. Eles prevalecem em tudo o que acontece. Nada é muito difícil para Deus (Jr 32.27); nada parece ser maravilhoso demais para ele (Zc 8.6); para ele nada é impossível (Gn 18.14; Mt 19.26; Lc 1.37). Portanto, os seus desígnios sempre prevalecerão. Contra a Assíria, ele diz:

Como pensei, assim sucederá, e,como determinei, assim se efetuará. Quebrantarei a Assíria... Este é o desígnio que se formou concernente a toda a terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações. Porque o SENHOR dos Exércitos o determinou;quem, pois, o invalidará? A sua mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás? (Is 14.24-27; cf. Jó 42.2; Jr 23.20)
Quando Deus expressa o seu desejo eterno por meio de palavras, ditas pelos seus profetas, essas profecias ocorrerão sem falta (Dt 18.21,22; Is 31.2).7 Deus, de vez em quando, coloca sua palavra como seu agente ativo, que inevitavelmente cumprirá sua determinação:

[Como a chuva molha a terra] assim será a palavra que sair da minha boca:não voltará para mim vazia,mas fará o que me apraz eprosperará naquilo para que a designei.(Is 55.11; cf. Zc 1.6)
Assim, o mestre sábio nos ensina:
Não há sabedoria, nem inteligência, nem mesmo conselho contra o SENHOR. (Pv 21.30; cf. 16.9; 19.21)
As Escrituras falam muitas vezes dos propósitos de Deus em termos de "o que o agrada" ou "sua boa vontade". A vontade de Deus certamente se realizará:

Digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade. (Is 46.10)
Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada;e, segundo a sua vontade,ele opera com o exército do céu e os moradores da terra;não há quem lhe possa deter a mão,nem lhe dizer: Que fazes? (Dn 4.35)
Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. (Mt 11.25,26)
Em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Ef 1.4,5; cf. v. 9)
Para ilustrar a eficácia do propósito de Deus na nossa vida, as Escrituras usam a imagem do oleiro e do barro (Is 29.16; 45.9; 64.8; Jr 18.1-10; Rm 9.19-24). Deus lida com as pessoas com a mesma facilidade com que o oleiro molda o barro, fazendo um vaso para um propósito e outro vaso para outro propósito. Seu propósito prevalecerá e o barro não tem direito algum de reclamar do oleiro quanto a isso. Sanders concorda que, nessas passagens, o barro não tem direito algum de reclamar do oleiro, mas ele acredita que o oleiro rejeita algumas peças de barro não por causa do seu propósito soberano, mas porque "essa peça de barro rejeitou o projeto divino". Então, ele diz que "a metáfora do oleiro com o barro deve ser compreendida com base no relacionamento de reciprocidade que Deus estabeleceu de modo soberano. Isso não deve ser compreendido como um ensinamento do controle divino sobre todas as coisas".8 Contudo, o poder total do oleiro sobre o barro está implícito na própria metáfora e explícito em Romanos 9.19-21, em que há a iniciativa do oleiro "para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra". Em Romanos 9, é muito claro, tanto no nível de metáfora, quanto no nível da História o relacionamento entre judeus e cristãos -, que o próprio Deus é a última fonte da distinção.
A eficácia geral do propósito de Deus forma o pano de fundo da doutrina reformada que conhecemos como "graça irresistível". Como mencionamos anteriormente, os pecadores resistem aos propósitos de Deus; este é, sem dúvida, um tema significativo na Escritura (Is 65.12; Mt 23.37-39; Lc 7.30; At 7.51; Ef 4.30; lTs 5.19; Hb 4.2; 12.25). Porém, o ponto principal dessa doutrina é que a resistência deles não subsiste contra o Senhor. Quando Deus determina levar alguém à fé em Cristo, ele não falhará, mesmo que, por razões próprias, ele escolha lutar com essa pessoa por um longo período de tempo antes de alcançar o seu propósito.
Portanto, as Escrituras ensinam de modo consistente que quando Deus elege, chama e regenera alguém em Cristo, pelo Espírito, essa obra alcança os seus propósitos salvíficos. Quando Deus dá a seu povo um coração novo, é certo que eles "andarão nos meus estatutos, e guardarão os meus juízos" (Ez 11.20; cf. 36.26,27). Quando Deus dá vida nova (Jo 5.21), não podemos devolvê-la. Jesus disse: "Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim" (Jo 6.37). Se Deus pré-conhece (i.é., favorece) alguém, ele certamente o predestinará a ser conforme a semelhança de Cristo, a ser chamado, a ser justificado e a ser glorifícado no céu (Rm 8.29,30). Deus "tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz" (Rm 9.18, referindo-se a Ex 33.19). O salmista diz:
Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti, para que assista nos teus átrios; ficaremos satisfeitos com a bondade de tua casa — o teu santo templo. (SI 65.4)Paulo acrescenta: 
"Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo" (lTs 5.9).
Como a sua palavra, portanto, a graça de Deus nunca retornará para ele vazia.
Podemos resumir o ensino bíblico sobre a eficácia do reinado de Deus nas seguintes passagens, que falam por si mesmas:

O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios do seu coração, por todas as gerações.(S133.ll)
No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada. (SI 115.3)
Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra,no mar e em todos os abismos.(SI 135.6)
Eu anunciei salvação, realizei-a eafíz ouvir;deus estranho não houve entre vós,pois vós sois as minhas testemunhas, diz o SENHOR; eu sou Deus.Ainda antes que houvesse dia, eu era;e nenhum há que possa livrar alguém das minhas mãos;agindo eu, quem o impedirá?(Is 43.12,13; cf. Dt 32.39)
Estas coisas diz o santo, o verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi, que abre, e ninguém fechará, e que fecha, e ninguém abrirá. (Ap 3.7)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Um caso exegético para o calvinismo - Rm 9:6-23


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Não que a palavra de Deus haja falhado. Porque nem todos os que são de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus; mas os filhos da promessa são contados como descendência. Porque a palavra da promessa é esta: Por este tempo virei, e Sara terá um filho. E não somente isso, mas também a Rebeca, que havia concebido de um, de Isaque, nosso pai (pois não tendo os gêmeos ainda nascido, nem tendo praticado bem ou mal, para que o propósito de Deus segundo a eleição permanecesse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito: O maior servirá o menor. Como está escrito: Amei a Jacó, e aborreci a Esaú. Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum. Porque diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e terei compaixão de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que usa de misericórdia. Pois diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei: para em ti mostrar o meu poder, e para que seja anunciado o meu nome em toda a terra. Portanto, tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece. Dir-me-ás então. Por que se queixa ele ainda? Pois, quem resiste à sua vontade? Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para uso honroso e outro para uso desonroso? E que direis, se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que de antemão preparou para a glória.” (Rm 9.6-23).
Alguém poderia objetar que o uso paulino deste modo distorce o AT, o que não exclui Ismael das promessas salvíficas. Como réplica eu diria que Paulo emprega Isaque e Ismael tipologicamente e relaciona suas histórias aos propósitos salvíficos de Deus. Além disso, apesar de vozes contrárias, é duvidoso que o autor de Gênesis concebesse Ismael como um portador da bênção pactual da salvação. Ele recebe as promessas de bênção temporal (Gn 17.20; 21.13, 18), mas ele provavelmente foi excluído do pacto salvífico com Abraão. 
Nesta conjuntura eu deveria notar que a seleção de um remanescente de Israel implica a seleção de alguns indivíduos de um grupo maior.
... O “chamado em Paulo” é eficaz, em que o chamado cria o que é desejado. O verso 11 repete a mesma tese. Por que a promessa foi feita antes do nascimento dos gêmeos e não baseada nas suas obras? O propósito é “a fim de que o propósito de Deus quanto à eleição prevalecesse”.
Isto não pode ser frustrado, nem mesmo pelos seres humanos, porque ele não é baseado em suas ações, obras ou escolhas, mas na vontade e na intenção de Deus. É importante notar também que Paulo não contrasta “fé e obras”, mas “o chamado de Deus e as obras”.
O verso 16 reapresenta e esclarece isto ao indicar que a escolha e esforço humanos não são a base sobre a qual a promessa misericordiosa de Deus é recebida. Este verso exclui nos termos mais claros possíveis a noção de que o livre arbítrio é o fator fundamental na eleição divina.
O poder é de dois gumes mesmo na narrativa do Êxodo, efetivando a salvação para Israel e trazendo julgamento para Faraó e o Egito.
Cranfield se perde ao colocar tanto o endurecimento e a misericórdia sob a égide da misericórdia de Deus. O exato ponto do v.18 é que a misericórdia e o endurecimento são antitéticos, e nenhuma indicação é dada de que aqueles que são endurecidos recebem a misericórdia de Deus.
Em qualquer caso, a referência a Faraó aqui deve ser fundamentada no contexto de Romanos... E assim o assunto em questão é o porquê da maioria dos israelitas não serem salvos.
Nem Paulo discorda nos versos 19-23 da ideia de que a vontade de Deus é a causa última do destino de alguém. Ele não resolve o problema ao recuar do seu argumento anterior. Paulo está bem ciente de que alguns se recusam a submeter-se ao que Deus tem ordenado. A resistência da maioria dos israelitas ao evangelho estimulou a escrita dos capítulos 9-11. Além disso, nos versos anteriores a resistência de Faraó à ordem de Deus é notável. No entanto, 9.14-18 indica que a resistência de Faraó foi no fim das contas devido ao endurecimento de Deus.
Se os seres humanos não podem no fim das contas resistir à vontade de Deus, então como nós deveríamos interpretar a resposta de Paulo à queixa no verso 20? Eu já mostrei que ele não nega a premissa: ninguém pode finalmente resistir à vontade de Deus. O que ele nega é a conclusão: Deus, portanto, não pode culpar os seres humanos.
Paulo não depende de qualquer um destes textos especificamente, embora o texto de Romanos 9.20 esteja especialmente próximo a Is 29.16. Paulo adapta a metáfora para os seus próprios propósitos, e reflete uma consciência das tradições bíblicas nas quais a ilustração foi empregada. Não se pode determinar, portanto, a partir dos usos antecedentes da metáfora se Paulo a emprega com referência a salvação individual. A significância da metáfora deve ser recolhida a partir do fluxo do argumento em Romanos uma vez que o uso judaico da metáfora é variado. Só o destino histórico das nações dificilmente responde a questão que provocou a discussão inteira: por que muitos em Israel não são salvos.
Os versos 22-23 se constroem sobre esta ilustração ao informar ao leitor por que DEUS PREPAROU alguns vasos para a destruição e outros para a misericórdia... O ônus da prova está sobre aqueles que veem uma separação entre o uso do termo no v. 21 e seu uso nos versos 22-23. No último exemplo as referências ao julgamento escatológico e a glória são claras... Tanto orge quanto apoleia se referem frequentemente ao julgamento escatológico em Paulo. Qualquer noção de destino histórico somente certamente parece forçado.
Uma vez que skeue orges refere-se ao julgamento escatológico e skeue eleous à glória escatológica, e uma vez que nenhum sentido contrário evidente pode ser encontrado entre os versos 21 e 22-23, segue-se que os vasos para honra e desonra devem naturalmente significar os salvos e os perdidos respectivamente. A palavra “honra” designa vida eterna em 2.7, 10, onde ele põe em paralelo o termo “glória”. 
De forma semelhante, a escolha de alguém para a honra escatológica e outro para o julgamento da mesma massa indica que aqueles escolhidos não tinham méritos especiais ou distinção que explicassem o fato de serem escolhidos.
Desse modo, a razão de Deus suportar pacientemente os vasos de ira é explicada. A bondade de Deus é sublinhada neste verso, pois a cláusula principal diz “ele suportou com muita paciência os vasos de ira.” A implicação é que teria sido justo para ele destruí-los imediatamente (cf. Rm 3.25-26). Aqueles com quem ele é paciente sãoskeue orges, pois o julgamento escatológico está em contraste com os skeue eleous no v.23 que experimentarão a salvação escatológica. Nem há qualquer insinuação de que os vasos de ira depois se tornarão vasos de misericórdia, pois o texto diz que eles “são preparados para a destruição”.
Finalmente, a frase participial no v. 22 explica porque Deus suporta com paciência aqueles que experimentarão a sua ira: ele quer “mostrar a sua ira e fazer conhecido o seu poder.” No caso de Faraó Deus demonstrou sua paciência ao não destruir Faraó imediatamente, embora ele tenha resistido à ordem de Deus. Ao adiar o seu julgamento sobre Faraó, porém, Deus exaltou seu nome e exibiu mais fortemente a grandeza de sua salvação e o terror do seu julgamento. A correspondência parece exigir uma interpretação semelhante do v. 22. Deus adia o seu julgamento imediato dos vasos de ira de forma que ele possa revelar toda a extensão do seu poder e ira sobre aqueles que continuamente resistem a sua oferta de arrependimento (Cf. 10.21). A ideia de que Deus suspende uma retribuição imediata a fim de impor um julgamento mais severo mais tarde é atestada em outro lugar na literatura judaica. Isto também responde a objeção observada anteriormente de que Deus não faria os vasos a fim de destruí-los uma vez que nenhum oleiro faz isso. Além disso, o conceito paulino de julgamento escatológico não envolve aniquilação, mas exclusão eterna da presença graciosa de Deus.
A palavra “preparados”, então, denota uma preparação DA PARTE DE DEUS para a destruição em vez de uma auto-preparação. Em qualquer caso, não se pode por recursos exegéticos livrar Deus de decidir o destino dos vasos de ira. Isto também fazia parte de seu plano, e assim a dupla predestinação não pode ser evitada. Não há qualquer base para a ideia de que os mesmos vasos de ira se tornarão depois vasos de misericórdia. O texto exclui isto explicitamente ao descrever os vasos de ira como “preparados para a destruição”.
Agora, o verso 23 nos informa que a demonstração desta ira tem um propósito maior. Quando os vasos de misericórdia percebem a ira temível de Deus sobre os desobedientes e refletem sobre o fato de que eles merecem o mesmo, então eles apreciam de uma forma mais profunda as riquezas da glória e da graça de Deus esbanjadas sobre eles. A misericórdia de Deus é apresentada com clareza contra o pano de fundo da sua ira. Assim, Deus exibe a gama completa dos seus atributos: sua ira poderosa e o esplendor da sua misericórdia. A misericórdia de Deus não seria impressionada na consciência dos seres humanos à parte do exercício da ira. (T. Schreiner, Romans, 497-523).

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Fonte: Triablogue 
Tradução: Francisco Alison Silva Aquino

sexta-feira, 27 de março de 2015

As nossas certezas


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O cantor cristão Stênio Marcius compôs uma música sobre um episódio da Bíblia, o qual relata o diálogo entre Pedro e Jesus, quando Cristo pede que os discípulos, depois de passarem a noite inteira pescando sem nenhum sucesso, lançassem as redes ao lago. Pedro, por sua vez, responde a Jesus se justificando que eles já tinham tentado a mesma coisa a noite inteira, e a música do Stênio mostra um Pedro, baseado na narrativa de Lucas (Lc 5.5), cheio de certezas de alguém que já nasceu na beira do mar, sempre pescando por ser ele filho de pescador. E a música mostra Jesus, filho de um carpinteiro, dizendo: 

          Filho de pescador eu nasci e aqui me criei          Conheço o mar há tanto tempo que já nem me lembro mais          Trabalhei noite inteira, e nada foi tudo que ganhei          E agora vens, queres me ensinar aquilo que na vida eu mais sei

No relato bíblico, Pedro, cheio de certezas e confiança, age da mesma forma quando Jesus o avisa de sua traição na ocasião da prisão de JesusDisse também o Senhor: Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo; Mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma teus irmãos. E ele lhe disse: Senhor, estou pronto a ir contigo até à prisão e à morte. (Lc 22.31-33)
Nos dois relatos acima, vemos a confiança de um pecador nele mesmo ante a Palavra do Mestre. No primeiro caso este pecador pensava entender daquilo que ele não criou, no segundo caso ele pensava entender sobre si mesmo, como num famoso dito popular: “eu me conheço, sei até onde eu posso ir. 
O problema não é o “ser confiante”, mas quando a confiança é um orgulho torna-se pecado. Portanto, quando Pedro não confia nas palavras do Senhor Jesus, ele peca. Isso nos mostra que, assim como Pedro foi orgulhoso, nós podemos ser igual a ele quando não cremos no que a Palavra de Deus nos mostra. 
A graça de Deus
Um dos sinais da graça de Deus na vida de um pecador regenerado que age desta maneira é o fato do Espirito Santo fazer lembrar daquilo que Jesus disse (Jo 14.26). Veja quando Pedro nega a Cristo ao ser reconhecido por uma criada, Jesus se volta para ele e Pedro se lembra das palavras de Jesus:
E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como lhe havia dito: Antes que o galo cante hoje, me negarás três vezes.” (Lc 22.61)
O fato de Pedro se lembrar do que Jesus havia lhe dito, é o que produziu um verdadeiro arrependimento. Remorso produz morte, mas arrependimento produz vida. Como por exemplo, o caso de Pedro e Judas; os dois foram avisados que eles iriam trair a Jesus, eles traíram, porém um se arrepende e o outro sente remorso, um se enforca, o outro chora amargamente e se volta para o mestre. Jesus tinha dito que escolheu doze e um deles era o diabo (Jo 6.70). Pedro, da mesma forma, foi chamado de Diabo (Mt 16.23). Por que um se arrepende e o outro não? 
Satanás, por permissão de Deus, entrou em Judas e em Pedro. Porém, observe que Jesus roga ao Pai para que preservasse somente a fé de Pedro (Lc 22.31,32b). A graça de Deus fez com que estes dois discípulos servissem a Cristo e fizessem a obra que Ele os designou, mas a graça salvadora de Deus fez com que somente Pedro fosse preservado diante da tentação. 
Essa escolha de Deus em preservar um e outro não, não é baseado nos que eles fizeram, pois os dois negaram a Cristo – os dois pecaram. Mas a escolha que Deus já havia feito foi baseada em Sua própria vontade. 
Diante disso, vemos que as nossas certezas (orgulho) não são nada diante da graça de Deus, pois se nós não confiarmos naquilo que a Bíblia nos diz, estaremos sendo arrogantes confiando em nós mesmos, sendo nós mesmos os nossos deuses e senhores. Mas Deus, por sua infinita graça, quebra esse nosso orgulho mediante as tentações que nos fazem ficar mais dependentes d'Ele, mostrando que não somos nada. 
***Fonte: Bereianos

quinta-feira, 26 de março de 2015

Hipocrisia: uma falsa devoção -





Texto base: Lucas 12.1-3
Introdução
No capítulo anterior do Evangelho de Lucas (11.14-54), a multidão e, especialmente os fariseus e escribas foram o alvo do discurso de Jesus. Agora, no capítulo 12, os apóstolos [ainda discípulos] (vs.1, 22) e a multidão (vs.54) são o alvo do discurso de Jesus. Se no capítulo anterior Jesus falou para a multidão e os líderes religiosos, no capítulo em voga Ele fala da multidão e dos líderes religiosos para os discípulos e a multidão.            A primeira parte do discurso de Jesus, ainda que proferida perante uma numerosa multidão, após ele ter saído da casa de um fariseu, onde fora convidado por ele para comer (11.37-53), é dirigida especialmente aos seus discípulos (12.1-2). A segunda parte, por sua vez, é dirigida à multidão (para mais detalhes, veja os versículos 13-14,16, 22,54). 
O extenso discurso de Jesus relatado neste capítulo é uma série de discursos diferentes para públicos diferentes. Jesus falava tanto em particular com os seus discípulos quanto de maneira geral às vastas multidões que o seguiam. Este discurso continua até o versículo 12.     É bem provável que todo o conteúdo do capítulo 12 seja um discurso sucessivo de Jesus, porém, com duas interpelações quando ele deixava de falar por instantes (12.13-15,41). A primeira delas foi feita por um homem que estava na multidão. 
Ele queria que Jesus o apoiasse numa disputa de herança familiar (12.13-15). A segunda foi feita por Pedro, visto que ele queria saber se a parábola proferida por Jesus era dirigida aos discípulos ou a todos (12.41). Portanto, o tema do discurso inicial de Jesus aqui é uma advertência contra a hipocrisia religiosa.
O esboço analítico desta perícope pode ser dividido em 3 pontos:
Primeiro, vemos um solene conselho de Jesus aos seus discípulos – apóstolos (vs.1); segundo, ele afirma terminantemente que toda hipocrisia praticada em secreto será um dia revelada (vs.2-3); e, finalmente, Jesus tece um conselho para todos (vs.3).

Explanação
1) Um conselho imprescindível (12.1) 
O confronto intelectual de Jesus com os fariseus, descrito em Lucas 11.14-36, concernente ao seu ministério na Galiléia, não está em foco aqui. Após cessar o seu discurso que refutava os fariseus, um deles convidou Jesus para comer em sua casa (11.37). Sendo assim, temos, agora, outro evento a lume. 
O conselho de Jesus para a abstenção do “fermento dos fariseus”, registrado em Marcus 8.15 refere-se a um fato ocorrido durante o seu ministério do retiro. Desse modo, não temos aqui, em Lucas 12.1-3, um paralelo do mesmo acontecimento. Lucas relata o que talvez tenha ocorrido mais tarde durante o ministério de Jesus na Peréia. 
Logo, a situação presente é uma continuação de um novo fato que começou em Lucas 11.37. Jesus e os discípulos não estão mais na casa do fariseu que o convidou para comer. Senão vejamos as lições que Jesus nos ensina através desta seção:
Um exemplo de hipocrisia 
1 - Posto que miríades de pessoas se aglomeraram, a ponto de uns aos outros se atropelarem, passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos: Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. 
Já do lado de fora da casa do fariseu, é dito que uma multidão de pessoas estava reunida para ouvir Jesus. Naquela época não havia o equipamento de som que temos hoje, o qual nos permite ouvir perfeitamente o pregador mesmo que estejamos longe dele. Por isso as pessoas chegavam a pisar por cima das outras para ver e ouvir Jesus mais de perto. 
A palavra miríades é uma hipérbole, e significa exatamente “dez mil pessoas”. Esta palavra era frequentemente usada de modo indefinido para designar um grande número de pessoas (At 19.19; 20.21). Logo, o número que compunha a multidão se aproximava ou ultrapassava dez mil pessoas; ou seja, eram muitas pessoas. Existem dois possíveis motivos pelo qual tantas pessoas estavam ali reunidas querendo ouvir Jesus: 
a) Interesse em Jesus como um tipo de “curandeiro ou milagreiro” e como um pregador fascinante. b) Curiosidade estimulada pelo debate de Jesus com os fariseus e os doutores da lei (11.37-54).   
Não obstante, Jesus direciona sua mensagem primeiramente aos seus discípulos. Lucas escreve que passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos. 
A palavra discípulos não se restringe apenas aos doze. Além deles, Jesus tinha muitos outros seguidores que também eram considerados discípulos (veja, por exemplo, Jo 6.60,66). É bem provável que muitos deles estavam inseridos na multidão. Evidentemente, o discurso de Jesus também seria ouvido pela multidão em geral; ele sabia e queria isso, porém o seu foco era os discípulos. 
Todavia, Jesus inicia a sua mensagem utilizando a figura do fermento, que é algo maléfico para os judeus (Êx 12.15-20). Ele adverte os seus discípulos contra o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. Essa advertência está intimamente relacionada com o que o Ele havia dito anteriormente na casa do fariseu (veja 11.39-44, 46). 
O “fermento se refere na verdade a levedura, que era uma porção retirada da massa de pão e deixada de lado para servir de fermento. As pessoas faziam seus próprios pães e estavam familiarizadas com a maneira na qual o fermento, ou a levedura, penetrava na massa vagarosamente e fazia com que esta aumentasse de volume”.[1]
A palavra fermento aparece outras vezes no Novo Testamento, porém sempre de forma negativa, com exceção da parábola registrada em Mateus 13.33. Paulo faz uso da figura do fermento para ilustrar o pecado (veja 1Co 5.6-8; Gl 5.9). A advertência que Jesus faz aos seus discípulos para absterem-se do fermento dos fariseus em Mateus 16.6,12, e seu paralelo em Marcus 8.15, com o acréscimo do fermento de Herodes, foi motivada por uma situação diferente da qual Lucas ressaltou. 
Lá, Jesus utiliza a figura do fermento para enfatizar o apego dos fariseus ao tradicionalismo religioso e condenar a doutrina deles como equivocada e herética. 
Fritz Rienecker afirma que Jesus acusa os fariseus de um tipo mais refinado de hipocrisia. Eles visavam envolver o povo em uma rede de formas religiosas, que carecia de qualquer cerne de devoção verdadeira. Havia uma contradição entre interior e exterior.[2] Sendo assim, os discípulos deveriam evitar o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia religiosa. 
Basicamente, a palavra hipocrisia denota “fingimento”, “falsidade”. William Hendriksen ressalta que hipocrisia refere-se ao mau hábito de alguém esconder sua verdadeira personalidade por trás de uma máscara. Equivale a insinceridade. Hipocrisia é desonestidade, engano.[3]  
William Barclay destaca que a palavra hipócrita teve como primeiro significado alguém que responde; assim, hipocrisia significa “responder”. Utilizava-se esta palavra para perguntas e respostas em um bate-papo ou diálogo; depois se aplicou às perguntas e respostas em uma peça de teatro. Dali ela se tornou relacionada à atuação. Portanto, hipocrisia é atuar, representar um papel.[4] 
Aqui em Lucas, “a hipocrisia era a principal iniquidade dos fariseus, e esconder um coração perverso era um sinal de santidade”.[5] 

Aplicação prática
Assim como o fermento, a hipocrisia começa pequena, mas de forma rápida e silenciosa; e, ao crescer, contamina a pessoa inteira. A hipocrisia tem sobre o ego o mesmo efeito que o fermento tem sobre a massa do pão: ela o faz inchar (veja 1Co 4:6,18,19; 5.2). Logo, o orgulho toma conta, e o caráter deteriora-se rapidamente. Quem deseja ficar longe da hipocrisia deve evitar a primeira porção de "fermento", por menor que seja. Uma vez que se começa a fingir, o processo é rápido e, quanto mais esperamos, mais a situação piora.[6]   Existem hipócritas em todas as esferas da vida. Eles são pessoas que tentam impressionar os outros refletindo aquilo que não são. O hipócrita esconde a sua verdadeira face através da máscara da falsidade. Hipocrisia é ausência de sinceridade.                                       Na vida cristã, um hipócrita é alguém que tenta parecer mais piedoso do que é verdadeiramente. Na realidade, ele sabe que não é o que demonstra ser externamente. Sabe que está fingindo e não espera ser descoberto. A vida cristã dele é, indubitavelmente, uma farsa! O hipócrita nunca é verdadeiro; ele está sempre atuando, sendo alguém quem não é. 
2) A hipocrisia será exposta (12.2)
Os versículos 2-9 correspondem a Mateus 10.26-33. Lá, Jesus havia dito as mesmas palavras que Lucas escreveu no versículo 2. Entretanto, não temos aqui um paralelo com a descrição de Mateus; antes, Jesus reitera o mesmo ensinamento que havia transmitido aos discípulos em outra ocasião, especificamente no seu ministério na Galiléia, porém aplicado de modo diferente neste diálogo com os discípulos e a multidão. 
Por vezes, as diferenças de uso e aplicação dos ensinamentos de Jesus nos evangelhos são o que podemos chamar de “interpretação editorial” – ou seja, um dos escritores sacros observava, em uma declaração qualquer em outro evangelho, uma lição diferente que o outro escritor não relatou. Assim ele decidia [evidentemente inspirado pelo Espírito Santo] relatar a lição que observou em seu evangelho.  
Não obstante, tendo advertido sobre o pecado da hipocrisia, e o perigo de ser um hipócrita, Jesus, agora, salienta o motivo da advertência contra a hipocrisia religiosa. Senão vejamos: 
Um fato inelutável 
Ele afirma categoricamente:
2 - Nada há encoberto que não venha a ser revelado, e oculto que não venha a ser conhecido. 
A hipocrisia triunfa somente enquanto é escondida dos outros. Leon Morris ratifica que a arte de ser um hipócrita depende da capacidade de conservar algumas coisas ocultas. Quando o ocultamento já não é possível, o hipócrita é inevitavelmente desmascarado.[7]  

A hipocrisia de muitos é revelada e conhecida ainda nesta vida, enquanto a de outros permanece escondida. Porém, toda hipocrisia no dia do julgamento final será revelada e conhecida (veja Ec 12.14; Rm 2.16; 1Co 3.13; Ap 20.12). 

Aplicação prática
No fim dos tempos haverá uma manifestação geral de tudo que estava oculto. Esse princípio supremo do governo divino visa estimular-nos a desde já agir constante e permanentemente de acordo com a verdade, sem ceder (Mc 4.21-22). Pelo fato de que tudo será revelado à luz da verdade, cada discípulo de Cristo deve precaver-se contra a hipocrisia. Quando Deus trouxer à luz o motivo da conduta e do serviço, oculto nas sombras, então será manifesto se os servos da palavra de Deus foram hipócritas ou testemunhas da verdade. Por isso Jesus exorta os discípulos a exercer seu serviço visando o grande dia da revelação (Cl 3.3; 1Jo 3.2).[8]   
3) Um conselho geral (12.3)
Visto que Jesus advertiu primeiramente e especificamente os seus discípulos sobre a necessidade de evitar o pecado da hipocrisia, dessa vez, Jesus aconselha especificamente a multidão, embora o mesmo conselho se estenda também aos discípulos e cristãos em geral. Senão vejamos:    Os segredos serão divulgados
Ele declara:
3 - Porque tudo o que disseste às escuras será ouvido em plena luz; e o que dissestes aos ouvidos no interior da casa será proclamado dos eirados. 
A expressão dissestes aos ouvidos traz a ideia de “sussurrar, falar cochichando aos ouvidos” para que ninguém saiba o que foi comunicado.
Já a expressão interior da casa, no grego ταμειοιξ (temeieion), é, literalmente, “quartos fechados”, ou conforme a ARC traduziu – gabinete. Esta expressão salienta um local restrito, onde assuntos secretos poderiam ser “sussurrados, cochichados” ou falados reservadamente (veja esta ideia em Mt 6.6; 24.26; Lc 12.24).    
Traz a ideia de despensa, que “são as salas de armazenagem que ficavam longe das paredes externas que facilmente poderiam ser escavadas.”[9] Champlin realça que, no oriente, os ladrões frequentemente invadiam uma casa arrombando uma das paredes. Por isso as despensas eram invioláveis por estarem afastadas da parede que dava para o exterior.[10] 
Por fim, Jesus afirma através de uma metáfora que tudo o que foi proferido em oculto será proclamado dos eirados. No oriente, muitas casas possuíam um pátio com telhado, isto é, casas com terraço. Esta cobertura era o lugar ideal onde alguém poderia discursar para outras pessoas que se encontravam na rua. Com esta metáfora, Jesus descreve a publicidade; em outras palavras, enfatiza o falar em público. 
No dia do julgamento final, Cristo, o justo juiz, irá revelar e proclamar tudo o que os homens [inclusive os seus discípulos ou os cristãos em geral não para a condenação deles, mas para o recebimento de galardões] tiverem dito em secreto, quer sejam coisas boas ou más (veja Rm 14.12; 2Co 5.10). 

Aplicação prática
Falar o que somos, fazemos e sentimos, mas na verdade falamos, fazemos e sentimos o contrário do que falamos, é hipocrisia! Os fariseus esboçavam piedade externa, mas internamente não eram nada do que demonstravam ser (veja Mt 23.25,28). 
Existem cristãos e pastores que pregam a plenos pulmões contra a mentira, o adultério, a prostituição, a maledicência, o roubo, a avareza e a falta de amor verdadeiro pelos irmãos, no entanto, praticam todos estes e outros pecados. Isto é hipocrisia, dissimulação! 
É inútil esconder a verdadeira identidade interna através de uma falsa identidade externa; ou seja, é hipocrisia demonstrarmos um comportamento perante os outros que destoa peremptoriamente do que realmente somos. 

Conclusão
Em outras palavras, podemos definir a hipocrisia como “viver uma vida dupla”! “Existe uma discrepância entre aquilo que a pessoa realmente é e a imagem que ela projeta de si mesma para os outros”.[11] Nesta advertência, Jesus não está condenando as falhas pessoais, pois todos nós falhamos; antes, Ele condena a hipocrisia “que nos faz assumir sermos melhores do que realmente somos”.[12]    A hipocrisia endurece o coração, reprime a voz do Espírito Santo na consciência convidando ao arrependimento e cega os olhos para enxergar e reconhecer este pecado. A hipocrisia persistente é sinal de apostasia! Que venhamos através desta advertência de Jesus confessar e nos arrependermos de toda hipocrisia que praticamos, pois certamente o Senhor Deus perdoa e restaura o sincero de coração.   

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Notas:

Bíblia de Estudo Genebra. Notas de Rodapé, pág 1343.

2 Fritz Rienecker. Lucas, pág 175. 
3 William Hendriksen. Lucas, volume 2, pág 164. 
4 William Barclay. Lucas, pág 139.  
5 A.T. Robertson. Comentário de Lucas a luz do Novo Testamento Grego, pág 232. 
6 Warren Wiesrbe. Comentário Bíblico Expositivo do Novo Testamento, volume 1, pág 285. 
7 Leon Morris. Lucas – Introdução e Comentário, pág 196. 
8 Fritz Rienecker. Lucas, pág 176. 
9 Leon Morris. Lucas – Introdução e Comentário, pág 196. 
10 Russel Norman Champlin. Lucas, pág 124.
11 Comentário Bíblico Africano, pág 1257.
12 Ibid, pág 1258.      

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Fonte: Bereianos

terça-feira, 24 de março de 2015

A Incapacidade de Vir a Cristo - Por Robert Murray M'Cheyne















Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia (João 6.44) 
Quão surpreendente é a depravação do homem natural! As Escrituras nos ensinam isso abundantemente. Todo pastor fiel levanta a sua voz como uma trombeta, para mostrar isto às pessoas. E a primeira obra do Espírito Santo, no coração, é convencer do pecado. 
Na Palavra de Deus, não existe uma descoberta mais terrível sobre a depravação do homem natural do que estas palavras do evangelho de João. Davi afirmou: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51.5). Deus falou por meio do profeta Isaías (48.8): “Eu sabia que procederias mui perfidamente e eras chamado de transgressor desde o ventre materno”. E Paulo disse: “Éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais” (Ef 2.3). Mas nesta passagem de João somos informados de que a incapacidade do homem natural e sua aversão por Cristo são tão grandes, que não podem ser vencidas por qualquer outro poder, exceto o poder de Deus. “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.44). Nunca houve um mestre como Cristo. “Jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46). Ele falava com muita autoridade, não como os escribas, mas com dignidade e poder celestial. Ele falava com grande sabedoria. Falava a verdade sem qualquer imperfeição. Seus ensinos eram a própria luz proveniente da Fonte de Luz. Ele falava com bastante amor, com o amor dAquele que estava prestes a dar a sua vida em favor de seus seguidores. Falava com mansidão, suportando a ofensa contra Ele mesmo vinda dos pecadores, não ultrajando quando era ultrajado. Jesus falava com santidade, porque era Deus “manifestado na carne”. Mas tudo isso não atraía os seus ouvintes. Nunca houve um dom mais precioso oferecido aos homens. “O verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá... Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede” (Jo 6.32, 35). O Salvador de que as pessoas condenadas necessitavam estava diante delas. Sua mão lhes foi estendida. Ele estava ao alcance delas. O Salvador ofereceu-lhes a Si mesmo. Oh! Que cegueira, dureza de coração, morte espiritual e impiedade desesperadora existem na pessoa não-convertida! Nada pode mudá-la, exceto a graça do Todo-Poderoso. Ó Homem destituído da graça de Deus, seus amigos o advertem, os pastores clamam em voz alta, a Bíblia toda o exorta. Cristo, com todos os seus benefícios é colocado diante de você. Todavia, a menos que o Espírito Santo seja derramado em seu coração, você permanecerá um inimigo da cruz de Cristo e destruidor de sua própria alma. “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer”. 
Quão invencível é a graça de Jeová! Nenhuma criatura tem o poder de atrair o homem a Cristo. Exibições, evidências miraculosas, ameaças, inovações são usadas em vão. Somente Jeová pode trazer a alma a Cristo. Ele derrama seu Espírito com a Palavra e a alma sente-se alegre e poderosamente inclinada a vir a Jesus. “Apresentar-se-á voluntariamente o teu povo, no dia do teu poder” (Sl 110.3). “Acaso, para o Senhor há coisa demasiadamente difícil?” (Gn 18.14.) “Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do Senhor; este, segundo o seu querer, o inclina” (Pv 21.1). 
Considere um exemplo: um judeu estava assentado na coletoria, próxima à porta de Cafarnaum. Sua testa estava enrugada com as marcas da cobiça, e seus olhos invejosos exibiam a astúcia de um publicano. Provavelmente ele ouvira falar de Jesus; talvez o tivesse ouvido pregando nas praias do mar da Galiléia. Mas seu coração mundano ainda permanecia inalterado, visto que ele continuava em seu negócio ímpio, assentado na coletoria. O Salvador passou por ali e, olhando para o atarefado Levi, disse-lhe: “Segue-me!” Jesus não disse mais nada. Não usou qualquer argumento, nenhuma ameaça, nenhuma promessa. Mas o Deus de toda graça soprou no coração do publicano, e este se tornou disposto. “Ele se levantou e o seguiu” (Mt 9.9). Agradou a Deus, que opera todas as coisas de acordo com o conselho da sua vontade, dar a Mateus um vislumbre salvador da excelência de Jesus; a graça caiu do céu no coração de Mateus e o transformou. Ele sentiu o aroma da Rosa de Sarom. O que significava o mundo agora para ele? Mateus não se importava mais com os lucros, os prazeres e os louvores do mundo. Em Cristo, ele viu aquilo que é mais agradável e melhor do que todas essas coisas do mundo. Mateus se levantou e seguiu a Jesus. 
Aprendamos que uma simples palavra pode ser abençoadora à salvação de almas preciosas. Frequentemente somos tentados a pensar que tem de haver algum argumento profundo e lógico para trazer as pessoas a Cristo. Na maioria das vezes colocamos nossa confiança em palavras altissonantes. No entanto, a simples exposição de Cristo aplicada ao coração pelo Espírito Santo vivifica, ilumina e salva. “Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Se o Espírito age nas pessoas, estas simples palavras: “Segue a Jesus”, faladas em amor, podem ser abençoadas e salvar todos os ouvintes. 
Aprendamos a tributar todo o louvor e glória de nossa salvação à graça soberana, eficaz e gratuita de Jeová. Um falecido teólogo disse: “Deus ficou tão irado por Herodes não lhe haver dado glória, que o anjo do Senhor feriu imediatamente a Herodes, que teve uma morte horrível. Ele foi comido por vermes e expirou. Ora, se é pecaminoso um homem tomar para si mesmo a glória de uma graça tal como a eloquência, quão mais pecaminoso é um homem tomar para si a glória da graça divina, a própria imagem de Deus, que é o dom mais glorioso, excelente e precioso de Deus?” Quantas vezes o apóstolo Paulo insiste, em Efésios 1, que somos salvos pela graça imerecida e gratuita? E como João atribui toda a glória da salvação à graça gratuita do Senhor Jesus — “Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados... a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!” (Ap 1.5, 6). Quão solenes foram as palavras de Jonathan Edwards, em sua obra Personal Narrative (Narrativa Pessoal)! “A absoluta soberania e graça gratuita de Deus, em demonstrar misericórdia àquele para quem Ele quer expressar misericórdia, e a absoluta dependência do homem quanto às operações do Espírito Santo têm sido para mim, frequentemente, doutrinas gloriosas e agradáveis. Estas doutrinas têm sido o meu grande deleite. A soberania de Deus parece-me uma enorme parte de sua glória. Tenho sentido deleite constante em aproximar-me de Deus e adorá-Lo como um Deus soberano, rogando-Lhe misericórdia soberana”. 
Ao sentir-me à graça um grande devedor Sou constrangido sempre, a todo instante! Que esta graça, com algemas, meu Senhor, Prenda somente a Ti meu coração hesitante. 
Robert Murray M’Cheyne (1813-1843) foi ministro de St Peter’s Church Dundee, Escócia (1836-1843). Foi um piedoso pastor evangélico e evangelista com grande amor pelas almas.


segunda-feira, 23 de março de 2015

Quando você é tentado a irritar-se com a fraqueza dos outros



Exortamo-vos, também, irmãos, a que admoesteis os insubmissos, consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos.” (1 Tessalonicenses 5.14)
Deus salva todo tipo de gente, coloca essas pessoas juntas em sua igreja e diz “agora amem um ao outro”. A família de Deus inclui aqueles que já andaram com Deus por anos e aqueles que ainda estão esfregando os olhos, maravilhados por terem sido salvos por Deus duas semanas atrás. Deus une os fracos e os fortes, e nos diz para vivermos juntos de uma forma que irá glorificá-lo.
Às vezes precisamos admoestar os outros
Aparentemente havia alguns em Tessalônica que não estavam trabalhando. Talvez eles tivessem se demitido acreditando que o retorno de Jesus era iminente. Talvez eles fossem só preguiçosos. Paulo manda admoestá-los, avisá-los, exortá-los a trabalhar e prover para suas famílias, e serem diligentes.
No entanto, Paulo também manda ser paciente com eles. É fácil ficar chateado com alguém que é preguiçoso. Quando você levanta cedo, aguenta o tráfego na hora do rush, moureja no seu trabalho, aguenta um chefe exigente, e chega em casa pra descobrir que seu irmão dorme até o meio dia e quer pegar dinheiro emprestado com você. É fácil ficar irritado. Fale com ele. Admoeste-o. Mas seja paciente com ele.
Perceba que, dos três tipos de pessoas que Paulo menciona, dois terços são “desanimados” e “fracos”. Aparentemente, mais crentes tessalonicenses eram tentados ao desânimo do que à ociosidade. Esse tem sido o caso em minha experiência pastoral ao longo dos anos.
Paulo diz para “consolar os desanimados” – os desencorajados, débeis e tímidos. Eles querem desistir, estão com medo, é difícil para eles ter fé. Você gasta algumas horas encorajando-os, eles saem confiantes e crendo no Senhor, mas no dia seguinte eles voltam tão desanimados e incrédulos como sempre foram. Seja paciente com eles.
É fácil ficar frustrado com os desanimados, especialmente se você não tem as mesmas dificuldades que eles. Deus deu a alguns de nós um dom de fé, ou nós crescemos na fé ao longo dos anos, então somos capazes de confiar em Deus quando ele nos leva pela enchente ou pelo fogo. Outros não têm este tipo de fé. Eles são constitucional e continuamente “desanimados”. Eles não parecem acreditar nas promessas de Deus. Eles querem e tentam acreditar, até creem por um tempo. E então afundam de novo. Não despreze-os. Lide com suas quedas. Seja paciente com eles.
Outros crentes são “fracos”. Eles não têm muita força espiritual. Eles falham repetidamente e parecem não conseguir vencer o pecado. Seja paciente com eles.
É fácil para aqueles que são fortes julgar os outros a partir de sua própria força.
Meu pai era uma ótima pessoa, mas não conseguia entender por quê as pessoas tinham tanta dificuldade em parar de fumar. “Eu fumei por vinte anos, então um dia eu simplesmente decidi desistir e pronto. Nunca fumei outro cigarro depois disso. Você só decide parar e para”. Não foi tão fácil pra mim. Eu havia usado tabaco por uns poucos anos e parei quando me tornei um jovem crente. Foi tão difícil pra mim. Eu falhei repetidamente e demorei um bom tempo até finalmente parar.
Pode ser pecado sexual ou bulimia ou raiva, mas muitos de nós somos fracos em alguma área. Aqueles que nunca lutaram contra um pecado específico podem ser tentados a desprezar aqueles que lutam. É fácil ficar impaciente com alguém se você nunca passou por isso. Em vez de dizer pra alguém pra se animar, superar, simplesmente parar ou simplesmente fazer, Paulo diz “ampare os fracos”. Ajude-os em oração. Ajude-os com encorajamento ou gentilmente se oferecendo para que prestem contas. E seja paciente com eles quando eles falharem. Jesus vai ajudá-los e eles vão crescer. Talvez cresçam devagar, mas vão crescer.
Deus tem sido incrivelmente paciente e longânimo comigo. Como eu posso ser impaciente e não ser longânimo com outros? Jesus aguentou as minhas falhas, descrença, preguiça e diversas fraquezas por anos, ainda assim ele nunca desistiu de mim. Como eu posso não fazer o mesmo por outros?
***Fonte: The Blazing Center
Tradução: Daniel TCVia: Reforma 21