quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Quando Deus escolhe - João Calvino ( 1509-1564)

Introdução ao Salmo 18 Todos nós sabemos por quais dificuldades e por obstáculos quase intransponíveis Davi assumiu o reino. Ainda ao tempo da morte de Saul ele era um fugitivo e, por assim dizer, fora-da-lei, e exausti­vamente passou sua vida em temor e em meio a infindas ameaças e perigos de morte. Depois de Deus o ter, com sua própria mão, colocado no trono real, ele foi imediatamente acossado por tumul­tos e insurreições por parte de seus próprios súditos; e ante as facções hostis, sendo superiores a ele em poder, às vezes chegava ao ponto de sentir-se completamente sucumbido. Inimigos externos, em con­trapartida, o tentaram severamente até à sua velhice. A tais calami­dades jamais teria subrepujado não fora ele sempre socorrido pelo poder de Deus. Havendo, pois, obtido muitas e notáveis vitórias, ele não canta, como os homens sem religião costumam fazer, um cântico em sua própria honra, mas exalta e magnifica a Deus como o Autor dessas vitórias, fazendo uso de um encadeamento de ter­mos notáveis e apropriados, e num estilo de inexcedível grandeza e sublimidade. Este Salmo, pois, é o primeiro dentre aqueles em que Davi celebra, em suaves melodias, a imensurável graça que Deus sempre demonstrou para com ele, tanto ao introduzi-lo na posse do reino quanto a partir daí a sustentá-lo em sua possessão. Ele tam­bém mostra que seu reinado era uma imagem e tipo do reino de Cristo, com o fim de ensinar e assegurar aos fiéis que Cristo, a des­peito de todo o mundo e de toda a resistência que este sempre lhe faz, ele seria, pelo tremendo e incompreensível poder do Pai, sempre vitorioso. Ao mestre de música, de Davi, servo de Jehovah, aquele que cantou a Jehovah as palavras deste cântico no dia em que Jehovah o libertou da mão de seus inimigos e da mão de Saul. Temos que determinar cuidadosamente o tempo específico em que este Salmo foi composto, como ele nos mostra que Davi, quan­do seus negócios foram conduzidos ao estado de paz e prosperi­dade, não se deixou intoxicar com extravagante regozijo como se dá com os homens sem religião que, quando obtêm o livramento de suas calamidades, descartam de suas mentes a lembrança dos bene­fícios divinos e se precipitam em grosseiros e degradantes prazeres, ou erigem sua torre e obscurecem a glória de Deus com sua soberba e vangloria desprovidas de conteúdo. Davi, segundo o relato da história sagrada [2 Sm 22], cantou este cântico ao Senhor quando já se achava desgastado pela idade, e quando, ao ser libertado de todas as suas tribulações, desfrutava de tranqüilidade. A inscrição aqui concorda com esse relato e, à luz do que está declarado ali, concluímos que ela não foi imprópria e incorretamente prefixada para este Salmo. Davi põe em relevo o tempo quando ele era canta­do, isto é, depois de Deus o ter libertado de todos os seus inimigos, para nos mostrar que ele estava, então, em perfeita e pacífica posse de seu reino, e que Deus o assistira não apenas uma vez, nem contra apenas um gênero de inimigos; visto que seus conflitos eram de tempo em tempo renovados, e o fim de uma guerra era o começo de outra; sim, muitos exércitos amiúde insurgiam-se contra ele a um só tempo. Desde a criação do mundo, dificilmente encontrare­mos nele outro indivíduo a quem Deus haja provado com tantas e com tão variadas aflições. Visto que Saul o havia perseguido com mais crueldade e com maior ferocidade e determinação do que to­dos os demais, seu nome, por essa conta, é aqui expressamente mencionado, ainda que, na cláusula precedente, o salmista haja falado, em termos gerais, de todos os seus inimigos. Saul não é expresso por último como se houvera sido um de seus últimos inimigos, pois sua morte se dera cerca de trinta anos antes desse tempo; e desde esse evento, Davi desbaratara muitos inimigos estrangeiros, e também reprimira a rebelião de seu próprio filho Absalão. Mas, persuadido de que era uma singular manifestação da graça de Deus em seu favor, e eminentemente digno de ser lembrado o fato de que ele havia por tantos anos escapado de incontáveis mortes, ou, melhor, que ao longo dos dias em que ele vivera sob o reinado de Saul, Deus havia operado, por assim dizer, tantos milagres em seu livramento, então ele com razão menciona e celebra em particular seu livramento das mãos desse implacável inimigo. Ao denominar-se de servo de Deus, ele indubitavelmente pre­tendia testificar de sua vocação ao ofício de rei, como se quisesse dizer: Não usurpei o reino temerariamente, fazendo valer minha própria autoridade, mas simplesmente agi em obediência ao orácu­lo celestial. Aliás, em meio às tantas tormentas que iria enfrentar, era um apoio muitíssimo necessário estar bem certo em sua própria mente de nada ter empreendido além do que Deus havia designa­do; ou, melhor, isso foi para ele um céu pacífico e um refúgio se­guro em meio a tantos tumultos e estranhas calamidades.2 Não há nada mais miserável do que uma pessoa, em adversidade, que entra em desespero por agir segundo o mero impulso de sua própria mente e não em obediência à vocação divina. Davi, pois, tinha sobejas razões para desejar que se fizesse notório que não foi movido de ambição que veio a tomar parte naqueles renhidos combates, os quais lhe foram tão dolorosos e difíceis de suportar, e que não havia intentado nada ilícito, nem usara de meios perversos, mas que sem­pre estivera em prontidão diante da vontade de Deus, a qual lhe serviu de luz a guiá-lo em sua vereda. Este é o ponto que nos é muitíssimo proveito sabermos, a fim de não esperarmos viver total­mente isentos de dificuldade, ao seguirmos o chamado divino; ao contrário, preparemo-nos para aquele doloroso e desagradável esta­do de luta em nossa carne. Portanto, a designação, servo, nesta pas­sagem, bem como em muitas outras, se relaciona com seu ofício público; justamente como, quando os profetas e apóstolos se de­nominam de servos de Deus, temos uma referência ao seu caráter oficial. E como se tivesse dito: Não sou rei por minha própria inici­ativa, senão que fui escolhido por Deus para ocupar essa posição por demais elevada. Ao mesmo tempo, devemos notar particular­mente a humildade de Davi, o qual, embora distinguido por tantas vitórias e sendo o conquistador de tantas nações e possuidor de tão imensa dignidade e riquezas, não atribui a si nenhuma outra honra senão a de Servo de Deus! Como se pretendesse demonstrar que con­siderava mais dignificante ter realizado fielmente os deveres do ofício com o qual Deus o investira do que possuir todas as honras e excelências do mundo.