domingo, 20 de março de 2016

A Igreja precisa manter-se simples - por Ruy Marinho



E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. 43 Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. 44 Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. 45 Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. 46 Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, 47 louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos. Atos 2.42-47

Ao afirmarmos que a Igreja mantinha-se simples não estamos dizendo que a igreja primitiva era uma igreja pobre, ou uma igreja não sofisticada, mas uma igreja que vivia em conformidade com a essência da fé cristã. Note que existem seis declarações nesse versículo que expressam as atividades da Igreja Primitiva:

Doutrina dos Apóstolos

O primeiro ponto a ser ressaltado é a Doutrina dos Apóstolos. O que Lucas quer dizer com “perseveravam na doutrina dos apóstolos” é que a Igreja Primitiva mantinha-se firmada na instrução dos apóstolos. A idéia expressa pelo verbete “perseverar” é dar constante atenção a alguma coisa. Ou seja, a Igreja Primitiva mantinha-se constantemente alicerçada pelo ensino apostólico.

É importante ressaltar que até este ponto da história a doutrina da igreja primitiva podia ser resumida pelo v.36 do mesmo capítulo: “Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo”. Contudo, é digno de nota que todos os apóstolos tinham sido instruídos por Cristo, e por certo podiam repassar aquilo que haviam aprendido. Aliás, a expressão grega referente a “doutrina dos apóstolos” sugere que tal instrução seja procedente dos apóstolos. Ou seja, o ensino da igreja é mantido por aqueles que tem autoridade e capacidade para tal tarefa.

Comunhão
Lucas não poderia estar equivocado quando utilizou o vocábulo “comunhão” quando se referiu à Igreja Primitiva. A descrição subseqüente, esplanada no tópico sobre unidade da igreja, expõe de forma muito clara as considerações dessa igreja. Assim, deve-se ressaltar que os primeiros cristãos “eram perseverantes (…) na comunhão”. E como foi anteriormente ressaltado, isso implica em dizer que eles eram fundamentados na experiência comum do corpo. Assim, como os outros pontos ressaltados por Lucas, a comunhão era essência da vitalidade da Igreja.

Partir do Pão
A expressão “partir do pão” não diz respeito a uma refeição típica da época, e que os cristãos mantinham-se comendo apenas pão, mas a expressão diz respeito à prática da Ceia do Senhor. O termo grego equivalente a partir em português é apenas utilizado no NT em referência à ceia. Alias. É digno de nota que o termo (the klasei tou artou) é apenas utilizado duas vezes no NT, ambas feitas por Lucas, e é de uso restrito à ceia. O uso da expressão é quase que um pleonasmo, visto que klasei (partir) só é aplicado a artou (pão). Segue-se que, com absoluta certeza, a igreja primitiva mantinha-se firmada constantemente no memorial da morte de Cristo.

Orações

As orações tinham um papel fundamental na vida da Igreja Primitiva. Isso pode ser claramente percebido pelo relado deixado por Lucas, que diversas vezes considera as orações dos primeiros cristãos. Em Atos podemos ver que a oração foi a atitude dos cristãos diante das decisões a serem tomadas (1.14), a atitude da liderança da igreja em situação de crescimento (6.4) e a prática da igreja quando estava em situação de perigo e perseguição (12.5).

Louvor
Esta é uma das poucas referências encontradas em Atos que descreve essa atitude dos cristãos. Isso, no entanto, não quer dizer que os primeiros cristãos não adoravam a Deus, mas que suas reuniões estavam mais voltadas para a instrução, a oração e a comunhão. Contudo, devemos notar que todos os outros fatos ocorriam enquanto os cristãos louvavam a Deus . Ou seja, embora sejam poucas as referências era uma atividade que estava intimamente ligada a expressão de adoração da igreja. Entretanto, não podemos afirmar com certeza se isso acontecia por meio da música, embora possa ser muito bem expressa por ela.

Evangelismo
No mesmo versículo podemos perceber, ainda que um pouco escondido, a atividade evangelizadora da Igreja Primitiva. Note: “e dia-a-dia acrescentava-lhes o Senhor os que iam sendo salvos”. Por mais que a atividade esteja centralizada na atividade divina na salvação, sabe-se que “aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação” (1Co.1.21). Portanto, não se pode negar que o evangelismo era parte integral da vida da igreja primitiva, sendo que isto acontecia diariamente. Segue-se, então, que a proclamação da verdade, o kerigma na Igreja Primitiva era parte essencial da vitalidade da Igreja de Cristo, assim como todos os elementos já mencionados.

A conclusão que devemos chegar aqui é que estes quatro elementos são essenciais na prática e na experiência da Igreja de Cristo. Portanto, a igreja local que não viabiliza a execução desses pontos não pode ser considerada uma igreja saudável.

Fonte: [ NAPEC - Apologética Cristã ]
Via: [ Ministério Batista Beréia ]

sábado, 19 de março de 2016

quinta-feira, 17 de março de 2016

A obra do Espírito Santo na encarnação de Jesus Cristo - Por Leonardo Dâmaso




Texto base: Hebreus 10.5

1. A preparação do corpo de Jesus

A criação dos céus e da terra foi um ato da divindade. Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo estiveram ativos em todo o processo. Cada um deles teve o seu papel especifico na realização deste trabalho.

Podemos salientar que Deus Pai foi quem “arquitetou” a criação – aquele que planejou todos os detalhes; Deus Filho foi quem “executou” o plano da criação – aquele que esteve presente trabalhando em todo o processo; e, finalmente, Deus Espírito Santo foi o “decorador” da criação – ou seja, poeticamente falando, aquele que “embelezou” os céus e a terra e tudo que nela há com a sua glória.

Portanto, a criação foi um trabalho da divindade, porém com diferentes tarefas realizadas por Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Todavia, na preparação do corpo humano de Jesus para a encarnação, não temos somente o ato do Espírito Santo, mas da divindade. Deus Pai e o próprio Deus Filho também cooperaram neste ato. Cada pessoa da trindade teve a sua participação.

Deus Pai foi quem planejou a encarnação e providenciou todo o material do corpo humano de Jesus, como a criação de sua alma humana e todas as suas vocações. Deus filho foi quem coordenou o trabalho de sua encarnação; e Deus Espírito Santo foi quem concluiu e manifestou este ato divino, a saber, o Deus Filho “encarnado”, o Deus-homem ao mundo.

O Espírito foi o autor da concepção de Jesus no ventre de Maria (Mt 1.18). A concepção da natureza humana de Cristo no útero de Maria foi um ato miraculoso do Espírito Santo (Lc 1.35).

2. Os elementos que constituem a pessoa de Cristo

a) A sua natureza humana

Os teólogos de Westminster acentuaram a substância humana que Jesus herdou de Maria, a qual é o fundamento psico-somático de sua verdadeira natureza humana. Sendo assim, o Catecismo Maior de Westminster enfatiza os dois elementos constituintes da natureza humana de Cristo – o seu corpo e a sua alma, da seguinte maneira:

Cristo, o Filho de Deus, fez-se homem tomando para si um verdadeiro corpo e uma alma racional, sendo concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, da sua substância e nascido dela, mas sem pecado” (P.37).

 Donald Macleod escreve cientificamente acerca da verdadeira humanidade de Cristo Jesus, porém em uma linguagem elucidativa e acessível. Ele ressalta:

“Através do cordão umbilical [que ligava Maria ao ente santo que estava nela] ele é este homem específico, o filho dessa mulher específica, o portador de toda a história genética prévia do seu povo e o recipiente de inumeráveis aspectos hereditários. Ele era o genótipo singular exatamente porque ela contribuiu ao menos com metade dos seus cromossomos (como qualquer mãe humana faria). Como o restante apareceu, permanece um mistério. A única certeza é que Maria não poderia sozinha contribuir com o cromossomo Y que determina o sexo, que é sempre proporcionado pelo pai biológico. Esse cromossomo, ao menos, deve ter sido proporcionado de maneira miraculosa; e permanece possível que todos os cromossomos normalmente derivados do pai tenham sido providenciados dessa maneira, [sendo] o ato divino que fertilizou o óvulo simultaneamente criou vinte e três cromossomos complementares àqueles derivados da mãe”.[1]

 Esta substância humana que Jesus herdou de Maria possui duas partes – uma material e outra imaterial. A primeira parte é o que podemos chamar de um corpo verdadeiro, e a segunda parte seria a alma [ou espírito] racional. Portanto, estes dois elementos constituem a natureza humana de Cristo, o nosso redentor.

Todavia, a concepção de Cristo está vinculada com o fato de Maria ser virgem e não ter mantido relacionamento sexual com José até que ele nascesse (Mt 1.25). Desse modo, a unipersonalidade do Deus Filho só pôde acontecer através da concepção virginal.

Se houvesse a fecundação de um homem no ventre de Maria, certamente nasceria uma pessoa humana, e Jesus acabaria possuindo esta pessoa na encarnação. Assim, teríamos um Redentor com dupla personalidade.

Quando um ser é concebido, uma pessoa vem à existência. Entretanto, quando a pessoa de Cristo, que sempre existiu, compartilha da nossa humanidade, ele adota uma natureza humana tornando-se, assim, não um ser bi-pessoal, mas um ser unipessoal.

Não temos duas pessoas em Jesus, uma humana e outra divina, mas uma pessoa com duas naturezas – uma divina e outra humana. Na concepção de Jesus, uma nova pessoa não veio a existir, como vemos em outros nascimentos; antes, como Deus que é e que sempre existiu, ele uniu-se a uma natureza humana.

A encarnação do Verbo através de uma mulher virgem é que tornou possível o nascimento deste ser que é unipessoal, e não bi-pessoal. Se o Deus Filho possuísse um ser humano gerado de pais humanos, haveria, então, dois seres dentro de Maria – um divino e um humano.

No entanto, foi através da atuação do Espírito Santo em uma mulher virgem que produziu um Redentor sem pecado e unipessoal, possuindo uma natureza divina que procedeu da segunda pessoa da Trindade, e uma natureza humana que procedeu de sua mãe biológica, Maria.

Com isso, entendemos que “não haveria a possibilidade de haver um Redentor com duas naturezas numa só Pessoa (a do Verbo divino) sem a intervenção sobrenatural do Espírito Santo em Maria causando a unio personalis”.[3]

Por outro lado, a ideia herética de que Jesus não possuía um corpo humano sempre esteve presente na história da igreja. Desde os primeiros séculos, a teologia cristã foi bastante influenciada pelo pensamento grego de que a matéria é inerentemente má e inferior ao espírito.

De acordo com este pensamento, se Jesus tivesse um corpo humano, ele poderia estar ligado ao pecado. Logo, ao querer preservar a divindade de Cristo do pecado, as ramificações que cometeram as heresias cristológicas, como o gnosticismo, docetismo, ebionismo, apolinarismo e o arianismo, acabaram negando a sua humanidade plena e verdadeira; ou seja, que Jesus possuía tanto um corpo humano quanto uma alma humana (veja Cl 2.9; 1Jo 1.1; 4.1-3; Lc 24.39; Jo 20.27).

Portanto, os reformadores tiveram o cuidado de ensinar a cristologia correta em seus epítomes teológicos, especialmente quando refutaram alguns anabatistas com ideias docéticas [4] no século 16.

Tendo observado algumas informações sobre a natureza humana do Deus Filho e a sua encarnação, acredito ser de vital importância esboçar alguns exemplos na Escritura que ratificam a sua humanidade. Vejamos:

i. JESUS SENTIA CANSAÇO João 4.6 – “Havia ali o poço de Jacó. Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. Isto se deu por volta do meio-dia.” (NVI)

Conforme é relatado por João, após uma viagem sob o sol causticante do meio dia, Jesus, cansado, senta-se à beira de um poço de água para descansar. As viagens que Jesus fazia exigiam bastante esforço físico. Ele não poderia beneficiar-se dos confortos da sociedade moderna de sua época e viajar à cavalo ou em carruagens.

Ele não tinha dinheiro para um conforto dessa natureza, que, por sinal, só as pessoas bem sucedidas financeiramente poderiam usufruir. As viagens evangelísticas de Jesus e dos discípulos eram feitas a pé.

Embora Jesus fosse verdadeiramente Deus, todavia, ele também era verdadeiramente homem e se cansava sempre que se esforçava fisicamente em alguma atividade quotidiana. Jesus era passível de limitações referente ao vigor físico, por isso ele precisava de descanso para se recompor. Vejamos o que diz o outro texto em pauta: Marcus 4.35-38a – Naquele dia, ao anoitecer, disse ele aos seus discípulos: Vamos atravessar para o outro lado. Deixando a multidão, eles o levaram no barco, assim como estava. Outros barcos também o acompanhavam. Levantou-se um forte vendaval, e as ondas se lançavam sobre o barco, de forma que este foi se enchendo de água. Jesus estava na popa, dormindo com a cabeça sobre um travesseiro.” (NVI)

Após um dia extenuado de trabalho ensinando, pregando, curando e operando milagres, Jesus, no barco mesmo, longe das multidões, aproveitou a noite, que era praticamente o único período que tinha para dormir e descansar. Por assumir na sua encarnação os atributos que pertencem à natureza humana, Jesus também precisava dormir. O cansaço não é produto do seu estado de humilhação, mas de sua limitação como homem que era.

ii. JESUS TINHA SEDE

João 4.7 – Então veio uma mulher samaritana tirar água. E Jesus lhe disse: Dá-me um pouco de água.” (Almeida Século 21)

Depois de um longo período de caminhada pelas estradas poeirentas da Galiléia, debaixo do sol escaldante do meio dia, Jesus senta-se à beira de um poço para descansar da viagem. Em seguida, uma mulher aparece para tirar água do poço e, vendo a mulher, Jesus diz: Dá-me um pouco de água.

A sede é o resultado natural e direto do cansaço provocado por alguma atividade física intensa no qual o corpo se expôs. Nesse caso, Jesus sentiu sede porque havia viajado a pé com seus discípulos por longas horas em estradas poeirentas sobre um calor descomunal.

Quando o corpo é exposto a grandes esforços, ele precisa dessedentar-se. A água é a mais importante substância que o homem ingere para continuar a viver. O ser humano pode ficar um tempo maior sem comer, mas não sem beber. A sede não é simplesmente o produto do cansaço; a água é necessária para a manutenção do nosso corpo. Deus nos fez com essa característica que aponta para a nossa limitação.[4]

Mesmo no estado de glorificação, nós, seres humanos, teremos sede. A sede é algo típico que pertence a seres finitos que carecem de subsistência. Quando a terra for restaurada por Deus, as mesmas coisas estabelecidas por Ele no Éden antes da queda serão trazidas de volta, fazendo, assim, parte do nosso quotidiano. Iremos comer e beber como já fazemos aqui neste mundo.

iii. JESUS SENTIA FOME

Mateus 4.2 – E depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome.” (ARA) A fome é um sintoma fisiológico pelo qual o corpo percebe que necessita de alimento para manter-se vivo. “Todos os movimentos dos nossos órgãos, sejam eles voluntários ou involuntários, gastam energia e, consequentemente, exigem alimento para que a energia gasta seja reposta. O gasto de energia tem de ser reposto somente em seres com a natureza finita”.[5] Indelevelmente, Jesus, além de sentir sede, também sentia fome porque possuía uma natureza humana que é finita. Após permanecer em jejum durante quarenta dias, mesmo não fazendo nenhum tipo de exercício físico que exigisse muito esforço de sua parte, é bem provável que Jesus houvesse perdido quase todas as suas forças.

Os próprios movimentos dos órgãos interiores (que geralmente executam movimentos involuntários, como o batimento do coração, o esforço do músculo diafragma ao encher os pulmões de ar, e outros) consumiam a energia do nosso Redentor. Some-se a isso o movimento dos membros exteriores (como braços, pernas etc.) que são voluntários; sem dúvida, a energia que se gasta todos os dias para a subsistência do corpo humano requer uma boa alimentação.[6] À semelhança de Jesus, Moisés também ficou quarenta dias e quarenta noites sem comer e sem beber água no monte Horebe (Ex 34.28). Elias também caminhou quarenta dias sem comer e sem beber água até o mesmo monte (1Rs 19.8). Contudo, entendemos que no deserto Jesus não precisou do suporte da natureza divina para resistir os quarenta dias e quarenta noites sem comer. Moisés e Elias também ficaram este período sem comer e, especialmente, sem beber água, que, segundo a medicina, são fatos raros de acontecer e que depende muito da resistência de cada um, pois geralmente o corpo humano suporta a falta de água por cerca de 5 dias. Após este período, podem ocorrer graves problemas de saúde que podem levar a pessoa ao óbito. No entanto, Jesus, Moisés e Elias certamente receberam algum auxílio divino para suportar ficar sem comer e beber durante 40 dias. Portanto, Jesus sentiu fome após um período significativo de abstinência de alimento, o que é absolutamente normal, pois ele possuía limitações como qualquer outro ser humano possui.

iiii. JESUS É LIMITADO PELO ESPAÇO

Todo ser corpóreo está limitado a um espaço e não pode fugir ou se locomover dele para outro espaço ao mesmo tempo. Se Jesus fosse somente divino, ele, então, não seria limitado pelo espaço, porque antes de o espaço vir a existir ele já existia.

Quando o verbo, que é Jesus, se encarnou assumindo a natureza humana, tivemos um Redentor não divino e humano, mas um Redentor divino-humano. A natureza humana de Jesus possui um corpo e um espírito humano com características próprias de um ser finito.

Tanto a natureza divina quanto a natureza humana de Cristo, depois de unidas pela encarnação, ocupam espaço de forma limitada como é próprio de seres finitos. Embora a natureza humana de Jesus possa ter adquirido certas propriedades que desconhecemos, todavia, ela ainda se movia no espaço.

Jesus se deslocava de um lugar para outro. É por causa disso que ele não somente aparecia como também desaparecia. Podemos chamar este fato de deslocamento espacial (veja Jo 20.26).

É absolutamente natural e próprio de seres finitos moverem-se no espaço. Os seres espirituais como anjos ou demônios, por exemplo, também se locomovem no espaço porque não possuem o atributo de onipresença, isto é, a capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Deus não é limitado nem tampouco encerrado pelo espaço. Ele, como um espírito infinito, é o único que possui esta capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo com todo o seu ser.

No caso de Jesus, ele não é somente Deus, mas também é homem. Sendo assim, ele estará para sempre limitado pelo espaço conforme a sua natureza humana que está localizada no céu à direita do Pai.

O céu, apesar de ser um lugar invisível e imaterial onde seres espirituais e intangíveis habitam, é também um lugar físico porque Jesus está presente lá com a sua natureza humana, e a sua natureza divina presente em todos os lugares do espaço.

b) A sua alma racional

O corpo não perfaz a natureza humana. Por isso era imprescindível que Jesus tivesse uma natureza humana completa. Visto que era verdadeiramente humano, ele também possuía uma alma, que é a parte imaterial do homem.

A expressão alma racional revela certa apreensão apologética dos teólogos que formularam a Confissão de Fé de Westminster, a qual combate equívocos teológicos e heresias antigas ainda presentes na mente de muitos cristãos com relação à pessoa de Cristo Jesus, o redentor dos eleitos de Deus. Por isso, os teólogos de Westminster inseriram na Confissão de Fé a expressão alma racional para designá-la como parte essencial da natureza humana do Deus Filho encarnado.

A alma humana é constituída de algumas propriedades que também havia na alma de Jesus Cristo. Senão vejamos:

i. Ele possuía uma mente humana

Jesus possuía uma mente como a de qualquer outro homem. “Sua mente possuía percepção, lógica, desenvolvimento de ideias e assimilação de conceitos e informações”.[7] Conforme é dito em Lucas 2.52a sobre a infância de Jesus, ele crescia em sabedoria.

Este texto não descreve um fato pertencente à natureza divina de Jesus – a sua mente divina, mas a sua natureza humana, ou seja, faz referência a sua mente humana. A mente divina não precisa se desenvolver em sabedoria; antes, Lucas relata que a mente humana de Jesus crescia gradativamente à medida que recebia informações e observava o que estava acontecendo na vida cotidiana.

Não obstante, um fato interessante que merece ser destacado é que a mente humana de Jesus não podia conhecer o que era exclusivo da mente divina. Vejamos um exemplo disso na Escritura:

Marcos 13.32 – Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos do céu, nem o Filho, senão somente o Pai. (ARA)

Por razões que não foram reveladas na Escritura, a mente divina do Deus Filho encarnado não revelou à sua mente humana [pelo menos até aquele período do seu estado de humilhação] a data da sua segunda vinda ao mundo. A mente humana de Jesus não era onisciente como é a mente divina.

A mente humana de Jesus não era capacitada a conhecer eventos futuros como a mente divina conhecia, exceto se a mente humana recebesse algum tipo de informação da mente divina, ou algum tipo de auxílio através de uma ação do Espírito Santo nela.

Um exemplo de que a mente divina revelou a mente humana de Cristo um fato pode ser visto no caso de Natanael, um dos apóstolos. Antes que ele se aproximasse de Jesus para o conhece-lo pessoalmente, ele já sabia como era o caráter de Natanael (Jo 1.47).

A mente divina, que sabe e perscruta todas as coisas, e que integrava a personalidade de Cristo, reproduziu informações pertencentes ao caráter de Natanael à mente humana. Estas informações, por sua vez, foram comunicadas aos outros discípulos que estavam perto dele.

Outro exemplo é o evento da grande pesca realizada pelos apóstolos quando ainda eram discípulos de Jesus e exerciam a profissão de pescadores. Lucas relata que Jesus sabia que, se eles lançassem a rede numa determinada parte do lago, haveriam de colher muitos peixes. Jesus sabia o lugar exato em que se encontrava o cardume. Como pescadores experientes que eram os apóstolos não conseguiram detectar a localização dos peixes (Lc 5.1-7).

Esse conhecimento que Jesus teve é exclusivo da mente divina que foi transmitido à sua mente humana. Não é característico da mente humana esse tipo de conhecimento, porém, quando recebeu essa informação da mente divina, a mente humana de Cristo informou a localização exata do cardume nas profundezas das águas. Sem a revelação da mente divina, a mente humana jamais poderia descobrir este fato.

ii. Ele possuía emoções humanas

As emoções fazem parte da constituição da natureza humana. Não somente os homens, mas também Deus, os anjos e o próprio Jesus, como Deus homem que é sentia emoções. Senão vejamos:

1. Jesus esboçou ALEGRIA ao proferir as palavras descritas em João 15.11 e na oração sacerdotal, em João 17.13.

2. Jesus demonstrou ENCANTAMENTO pela fé que encontrou no centurião de Carfanaum, em Mateus 8.10.

3. Jesus teve COMPAIXÃO por um homem discriminado pela sociedade da época por ser leproso (Mc 1.40-41; veja outro exemplo similar em 6.34).

4. Jesus manifestou TRISTEZA ao ver Maria, sua família e os amigos chorando e lamentando pela morte de Lázaro (Jo 11.33-35).

iii. Ele possuía vontade humana

Mateus 26.39 – E, adiantando-se um pouco, prostou-se com o rosto em terra e orou: Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice, todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres. (Almeida Século 21)

Heber Carlos de Campos escreve:

Podemos ver perfeitamente duas vontades em questão: a divina e a humana, embora não na mesma pessoa. Lemos aqui que a divina é claramente a do Pai, enquanto que a outra vontade certamente é a vontade humana de Cristo. A vontade divina é a mesma nas três Pessoas da Trindade, porque todas elas possuem a mesma natureza divina. Todavia, somente o Filho encarnado possui a vontade humana, não as outras Pessoas da Trindade, porque a vontade humana se deve ao fato de ter ele assumido a natureza humana. Assim como as duas naturezas em Cristo pensam de modo diferente, sentem de modo diferente, também as volições são diferentes. Contudo, não há conflito na pessoa divino humana de Cristo. Sempre a vontade divina terá preeminência sobre a vontade humana, sendo esta última sempre submissa à primeira.[8]
 As duas vontades em Cristo eram distintas e inseparáveis, mas elas sempre estiveram em harmonia, pois a vontade humana era invariavelmente subordinada à vontade divina.

iiii. Ele possuía senso moral

Outra característica que faz parte da natureza humana, e que difere os homens dos animais, é o senso moral. Todos os homens – quer sejam cristãos ou não, possuem o mínimo de senso moral. Contudo, Jesus é enfatizado nas Escrituras por ter um senso moral absolutamente irrepreensível em virtude de sua total santidade.

Por Cristo ter seu senso moral qualificado pela sua santidade, seria peremptoriamente impossível Ele permanecer indiferente e sem ação ao se deparar com erros morais de outrem.

“O senso moral envolve, não obstante, a capacidade de julgar o que é certo do errado, mas essa capacidade se torna cada vez maior à medida que um ser racional é santificado. Jesus Cristo era santo em sua natureza humana, e por isso tinha a capacidade plena de fazer julgamentos absolutamente corretos”.[9] 

Finalmente, ao confrontar os pecados dos homens, Jesus esboçou algumas emoções. Vejamos apenas duas delas:

1. Jesus demonstrou IRA contra aqueles que estavam fazendo do templo, que era um lugar de adoração e culto a Deus naquela época, um comércio (Jo 2.15-17).

2. Jesus ficou INDIGNADO com a ausência de compaixão e amor pelo próximo por parte dos líderes religiosos hipócritas e legalistas em uma sinagoga, num dia de sábado, onde ele estava prestes a curar um homem com a mão ressequida (Mc 3.5).

segunda-feira, 14 de março de 2016

Os cristãos e os protestos contra o governo.


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Romanos 13.1-7 é um texto bíblico usado e abusado para justificar o silêncio e a omissão por parte dos cristãos, mesmo diante de governos autoritários ou totalitários.

Mas deve-se levar em conta os seguintes pontos:

1. Na Carta aos Romanos o poder pertence exclusivamente a Deus. As “autoridades do governo” nunca são chamadas de “poder” ou “poderes”, como se convencionou chamar na linguagem política contemporânea. Na carta, o único que tem poder é Deus, que vem a nós através do evangelho, que é Jesus Cristo morto e ressurreto, o único Senhor, e Senhor de todos. Já que o Deus todo-poderoso estabelece toda autoridade, essa tem um poder derivado e, por isso, limitado.

2. Romanos 13.1-7 trata da autoridade legítima ideal e a define: (a) esta é serva de Deus (“diakonos” [13.4], que pode ser traduzida como ministro, administrador ou empregado; e “leitourgos” [13.6], que designa o servo do Estado, aquele que faz um serviço para o povo) para o bem dos cidadãos; (b) recompensa o bem que é feito pelos que estão sob o seu governo; (c) e detém o poder da espada, sendo agente de punição contra quem pratica o mal – e por cumprir tais prerrogativas ordenadas por Deus, os cristãos se sujeitam “por causa da consciência” a tal autoridade e pagam tributos e impostos.

3. Quando as autoridades deixam de servir aos cidadãos, enaltecer o bem e punir o mal, DEIXAM DE SER AUTORIDADE LEGÍTIMA.

4. Logo, não são mais ordenadas por Deus. Se tornam a besta que surge do mar (Ap 13.1-10), tentando ser o idolátrico “Estado total”, que exige culto e submissão. E devem ser resistidas de toda forma legítima pelos cristãos, inclusive por meio da desobediência (como os apóstolos e cristãos mártires fizeram a partir do último quarto do século I d.C.; cf. At 5.29) e protestos (e.g. 1Rs 12.3,4; At 16.37; 21.37-39; 22.25-28; 23.17-22; 24.10,11,24-26; 25.8-12; 25.11; 26.1-32).

5. Duas citações de R. C. Sproul, que resumem o ensino global das Escrituras sobre a relação do cristão com o Estado, reforçam o que aqui é exposto:
“...Aqueles que se escondem atrás da ideia de que a igreja nunca deve falar sobre questões políticas esqueceram um princípio das Escrituras que podemos chamar de crítica profética. Pode ter sido politicamente incorreto o fato de Natã confrontar Davi sobre o seu adultério com Bate-Seba e o assassinato de Urias (2Sm 12.1-15a). Pode ter sido politicamente incorreto o fato de Elias enfrentar Acabe por seu confisco pecaminoso da vinha de Nabote (1Rs 21). Pode ter sido politicamente incorreto o fato de João Batista desafiar o casamento ilícito de Herodes, o tetrarca (Mt 14). Nesses e em outros exemplos das Sagradas Escrituras, vemos que os representantes da igreja não tentavam tornar-se o Estado, mas ofereciam uma crítica profética ao Estado — apesar das possíveis consequências. A igreja não é o Estado, mas é a consciência do Estado, e essa é uma consciência que não pode se dar ao luxo de tornar-se cauterizada e silenciosa.”
“A Igreja é chamada a ser um crítico do Estado, quando este falha em obedecer ao seu mandato debaixo da autoridade de Deus.”

6. Portanto, Romanos 13.1-7 não pode nem deve ser usado para justificar passividade ou omissão diante daqueles que traíram seu chamado e perderam a legitimidade de fazer parte da autoridade e ordem que vem de Deus.

Em países em que estes pontos foram compreendidos nunca houve ditaduras.

Para os cristãos que participarão dos protestos contra o governo no domingo:

1. Para aqueles que guardam o domingo como dia santo e para aqueles que entendem todo dia como “santo ao Senhor”, a direção é: “Uma pessoa considera um dia mais importante do que outro, mas outra julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente convicto em sua mente.” (Rm 14.4-5; cf. Gl 4.10-11; Cl 2.16-17). Que um e outro se abstenham de julgar o outro, pois tal postura nega o senhorio de Cristo. E que todos orem pela nação, em mútuo respeito, “não para debater opiniões”, pois cada um terá de prestar a Deus contas de si mesmo. De toda forma, este assunto não é central para a mensagem evangélica; “portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu, para glória de Deus” (Rm 14.1,12; 15.7).

2. A maioria das manifestações está marcada para o horário da tarde. Deste modo, que os cristãos aproveitem o tempo de culto pela manhã para suplicar para que Deus perdoe nossos muitos pecados e tenha misericórdia de nosso país, e se agrade de usar os acontecimentos desta época para mudar os rumos da nação. Um importante motivo de oração é que governantes e governados tenham real respeito e apreço pelos valores cristãos, pelo decoro e pelos princípios justos presentes nas leis e Constituição do Brasil. Tal mudança não se dará “por força nem por poder”, mas pelo “Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” (Zc 4.6).

3. Durante o protesto, permaneçam em oração. Se em grupo, aproveitem para orar juntos pelo país, portando-se como “o sal da terra” e “a luz do mundo” (Mt 5.13-14).

4. E manifestem-se pacificamente, sem responder a eventuais provocações e repudiando toda violência, para que sejam reconhecidos como “filhos de Deus” (Mt 5.9).

Pois foi assim que as reuniões de oração realizadas na Nikolaikirche, em Leipzig, contribuíram para derrubar o comunismo na República Democrática da Alemanha, no ano de 1989.

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Autor: Franklin Ferreira

domingo, 13 de março de 2016

A Queda – Como o ser humano foi cair no pecado? Joel Beeke

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Uma das maiores histórias já contadas é a história de um homem tentando voltar para casa. Ele esteve lutando na maior guerra da sua era, mas agora o seu maior desafio reside logo à sua frente: voltar para casa. O seu nome era Ulisses, e sua história é contada na grande obra de Homero, A Odisseia. O problema de Ulisses não era que ele meramente não sabia o caminho. Era que de alguma forma, depois ter ido embora, o mundo havia se tornado maior. Os obstáculos haviam se tornado maiores (ele derrotaria Ciclope ou viraria o seu jantar?).

As escolhas haviam se tornado mais agonizantes (ele perderia o seu navio inteiro para Caríbdis ou apenas alguns homens para Cila?). E as tentações haviam se tornado mais fortes (não apenas Sereias, mas a belíssima Calipso tentando-o a abandonar o seu lar de uma só vez). Em diversos momentos da história, você se pergunta se Ulisses irá mesmo voltar para casa. E não apenas isso: será que ele encontrará a sua esposa e seu filho, o seu lar e seu reino, como ele os deixou? Mais importante de tudo, irão eles encontrar o mesmo homem de vinte anos atrás? 2500 anos mais tarde, aquela história continua ecoando conosco.

Apesar de todas os avanços da tecnologia, medicina e conhecimento que foram adicionados à nossa “qualidade de vida”, lá no fundo o sentimento de que vivemos em um lugar habitável, porém inquestionavelmente hostil, é tão inescapável para contemporâneos quanto para os gregos antigos. Assim como diz a famosa frase de Thomas Wolfe: “As coisas que ocorrem ao homem são trágicas. Isso é inegável no fim de tudo. Todavia, precisamos negá-lo ao longo do caminho.

A humanidade foi moldada para a eternidade”. Designados para a eternidade e, no entanto, nós nos vemos aqui, em um mundo que – com toda a sua beleza – é ferozmente cruel e sem perdão. Sentimos que esse mundo não é do jeito que devia ser, e, no entanto, não conseguimos descobrir o que aconteceu ou como consertá-lo. Com o tempo tomamos conhecimento que a conclusão de Wolfe estava correta, que, ainda que com grande esforço, “você não consegue voltar para casa”.

Nós não temos nem certeza de onde está o nosso lar. Essa história sobre deixar a casa para trás e precisar voltar, mas sem saber como ecoa conosco porque é uma história bem mais antiga do que o épico poema de Homero e bem mais pessoal do que o romance de Wolfe. É mais antiga, pois é parte da Grande História ou Narrativa que Deus conta sobre os seus atos e pronunciamentos que vão do princípio ao fim da História. É mais pessoal, pois é a nossa história, sua e minha. É a história da falta de repouso, daquele vazio dentro de nós que simplesmente não vai embora, não importa quão agradável a vida se torne. Ao contemplarmos esse problema, olhamos para o problema que reside no coração da história bíblica, aquilo que os teólogos cristãos se referem como Queda. Isso é uma questão de teologia bíblica.

Buscaremos entender a Bíblia como uma narrativa singular divinamente inspirada, uma revelação do propósito e plano de Deus para a humanidade que se desdobra em tempo e espaço. Ao considerarmos a história inteira da Bíblia a partir dessa perspectiva, eu espero que entendamos melhor não somente a nossa própria condição – o que significa que todos nós verdadeiramente abandonamos nossa casa – mas como de fato também podemos voltar de novo. 

A história da Queda


A história da Queda começa no Paraíso. Deus criou Adão e Eva e os colocou em mundo perfeito para que refletissem a sua glória. Ele providenciou que eles tivessem tudo o que precisavam. Ele lhes deu um trabalho significativo, prazeroso e gratificante. Ele os deu um ao outro. E ele os estabeleceu como subgovernantes sobre toda a criação. Entretanto, havia apenas um limite que ele colocou por cima da liberdade e autoridade deles. Havia uma árvore no Jardim do Éden, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, da qual eles não deveriam comer. Neste cenário, aparece Satanás ocupando o corpo de uma serpente. Satanás tenta Adão e Eva a fazerem a única coisa que não deveriam fazer: comer da árvore proibida. Incrivelmente, eles caíram no seu esquema e escolheram desobedecer a Deus. Ao consumarem o ato, eles passaram de um status de plena ausência de culpa diante de Deus e de si mesmos, para um status de desonra, vergonha e condenação moral. 

Imediatamente tudo muda. Porque decidiram se rebelar, Deus julga Adão e Eva. A vida será cheia de dor, sofrimento e tristeza. E mais: eles foram expulsos do Paraíso e exilados do seu lar. Não sendo a expulsão temporária, um anjo empunhando uma espada flamejante foi posicionado na entrada do Jardim assegurando que eles nunca retornariam vivos. Todavia a sua expulsão física é somente o prelúdio de um exílio muito mais profundo que não somente os afetará, como todos os seus descendentes. Nós que fomos criados para viver para sempre – moldados para a eternidade, como disse Wolfe – somos sujeitos ao eterno exílio da morte.

Muitos em nossa cultura querem abafar esse ponto da história. Eles reagem contra a história porque parece apresentar uma imagem de um Deus perverso e petulante que reage exageradamente ao flagrar os seus filhos com a mão dentro do pote de biscoito. Homens chamados a pregar e ensinar essa história precisam estar preparados para tal reação e pedir às pessoas que retenham seus julgamentos. É somente quando a história se desdobra e a magnitude dessa rebelião se torna evidente que a maldição de Deus é vindicada.

Seguindo com a história, nós vemos que as consequências da rebelião de Adão e Eva são mais profundas do que pareciam no começo. Os filhos nascem, todavia não em inocência. O âmago da natureza de Adão e Eva foi corrompido e contorcido. Agostinho descreveu essa natureza como “voltando-se para si mesmo”, de modo que a natureza humana não reflete mais a glória de Deus, mas somente um senso abarrotado de si mesmo. E tal natureza, juntamente com a culpa que a acompanha, é repassada para seus filhos. Assim, as coisas não continuaram normais depois da Queda. Pelo contrário, ela continua e se aprofunda à medida que a criação termina em morte e decomposição. Como W. B. Yeats memoravelmente disse e Chinua Achebe ilustrou: “as coisas se despedaçam, o que é central não se mantém”. Satanás planejou exterminar as almas de Adão e Eva.

Não demorou muito e Caim efetivamente assassina seu irmão Abel. Satanás planejou causar um obstáculo entre Adão e Eva quando um culpou o outro em função do causaram. Algumas gerações mais tarde, Lameque ignora qualquer ideia que se possa ter sobre união matrimonial e toma para si duas esposas. Caim comete assassinato por causa de uma intensa cobiça; Lameque comete homicídio simplesmente porque foi meramente ferido. E assim as coisas prosseguem, até que a perversidade da humanidade cresce a tal ponto que que “toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6.5 NVI). Deus decide que deve finalmente julgar os próprios homens e mulheres que criou à sua própria imagem.

Deus envia o Dilúvio para destruir a humanidade, poupando somente Noé e sua família, e o mundo tem um novo começo. É como se Noé fosse um novo Adão que pode “tentar outra vez” num mundo novinho em folha. O único problema é que Noé e sua família ainda possuem a natureza caída que herdaram de Adão. Mais uma vez o pecado se desenvolve bem onde foi deixado para trás. Eventualmente, a humanidade volta exatamente onde estava nas vésperas do Dilúvio. Dessa vez. o alvo de suas más intenções não é tanto a violência de um contra o outro, mas, sim, contra Deus, à medida que procuram estabelecer a sua absoluta e completa independência, simbolizada na Torre de Babel. Mais uma vez, Deus julga a humanidade, dessa vez não a destruindo, mas frustrando-a. Em Gênesis 11, a linguagem da humanidade é confundida, separando-nos um do outro. Deus dispersa a humanidade pela face da terra e desse modo frustra os nossos intentos idólatras.


Nesse contexto de divisão, frustração, futilidade e morte, Deus chama para si um povo especial. Dando início com Abraão, Deus separa o seu próprio povo do restante da humanidade. Esse povo – um Adão coletivo – é chamado pelo nome de Deus. Eles devem obedecê-lo e conhecê-lo como o seu Deus. Todavia, até aqui, a Queda insiste em se fazer presente. Ló e sua família escolhem a perversidade de Sodoma e Gomorra ao invés da piedosa sociedade com Abraão. Esaú prefere os confortos desse mundo ao invés das promessas de Deus. Finalmente, ainda que Deus tenha resgatado a nação de Israel da escravidão do Egito e a trazido para a Edênica Terra Prometida, a nação de Israel escolhe adorar a Deus na forma de ídolos, e, em seguida, Deus é completamente abandonado em favor dos ídolos.

Aquilo que Israel fez coletivamente, os seus reis fizeram representativamente. Israel exigiu um rei para se parecer com as nações que não conheciam Deus, e o seu primeiro rei, Saul, era exatamente o que desejavam. Alguns reis mais tarde, Salomão começou bem, entretanto o seu coração se voltou aos ídolos em lealdade às suas esposas estrangeiras. Jeroboão, o primeiro rei do reino do norte, deliberadamente determinou o culto idólatra para enfraquecer a lealdade das dez tribos à Jerusalém. Acaz, rei do sul Judá, demonstrou em quem confiava ao construir uma cópia de um altar à Baal em Damasco e inserindo-o no Templo de Israel.

Em resposta, Deus consistentemente visitou o seu povo com julgamento. Repetindo Gênesis 11 e Gênesis 3, Deus primeiro os separa e finalmente os expele, exilando-os da Terra Prometida. Setenta anos mais tarde, o reino do sul de Judá retorna do exílio, mas é evidente que o seu exílio espiritual continua. Deus não volta a habitar no Templo reconstruído, e o Santo dos Santos é deixado vazio. Eventualmente, até mesmo os profetas caem no silêncio.

No final do Velho Testamento, o povo visível de Deus está num estado tão arruinado quanto os gentios. Ambos estão diante da ameaça do eminente julgamento de Deus. Mais explicitamente, as palavras finais do Velho Testamento ecoam Gênesis 3, alertando que Deus virá e ferirá a terra com uma maldição. 

À medida que o Novo Testamento inaugura um novo profeta, João Batista, ele aparece em cena e assume o legado de Malaquias, advertindo o povo de que o juízo está próximo. Porém, parece que ninguém está ouvindo. Deus envia o seu próprio filho, Jesus, o qual leva uma vida de perfeito amor e perfeita obediência, uma vida que não deveria ter ofendido ninguém. Contudo, a humanidade se tornou tão perversa que agora judeus e gentios tramam em conjunto para matar o único homem que nunca mereceu morrer. Em conjunto, eles o pregam no madeiro, na cruz, e declaram que o seu único rei era César. 

Isso aconteceu há dois mil anos. Desde lá, a corrupção e a maldade da humanidade se expandiu muito mais e com maior eficiência. No entanto, nada, de fato, mudou. Todas as guerras que hoje ocorrem, toda violência e morte, a escravidão, os genocídios que consistentemente marcaram os últimos cem anos, a exploração de mulheres e crianças desejando gratificação sexual, até mesmo a cruel indiferença entre o rico e o pobre, tudo isso têm sido apenas um comentário estendido daquela primeira declaração de independência contra Deus.

Qual será o fim da Queda? Qual será o final dessa história? Um outro profeta chamado João, o apóstolo João, nos conta. Em Apocalipse 18, nós vemos a Queda final, um dia no futuro, quando este mundo cairá debaixo do julgamento final de Deus, para nunca mais se levantar. Naquele dia, todos aqueles que por toda a história persistiram em sua rebelde declaração de independência, os quais escolheram o culto aos ídolos em oposição à Deus, serão deixados de fora do céu, e o tormento angustiante do seu exílio no inferno durará por toda a eternidade.